Carta IEDI
Economia global sob efeito da guerra e da pandemia
A guerra da Ucrânia representou um expressivo revés nas projeções para a recuperação econômica mundial, ao que também deverá se somar os novos surtos de Covid-19 na China. A Carta IEDI de hoje sumariza as alterações de cenário das principais instituições multilaterais para 2022 e 2023 em função destes eventos não esperados no final do ano passado.
De acordo com o cenário básico do FMI, divulgado no final de abril de 2022, após a recuperação global do choque do Covid-19 em 2021, quando o PIB mundial cresceu 6,1% contra uma contração de 3,3% em 2020, a economia global desacelerará para 3,6% em 2022 e 2023. Isso representa uma revisão para baixo de, respectivamente, 0,8 ponto percentual (p.p.) e 0,2 p.p em relação ao cenário do Fundo de jan/22.
A OECD ainda não atualizou suas projeções para o crescimento global, mas o seu Interim Outlook de mar/22 compartilha a avaliação do FMI de que a guerra deve retirar algo como 1 p.p. do crescimento do PIB mundial. Já o novo cenário da UNCTAD, elaborado após a eclosão da guerra, se mostra mais pessimista que o do Fundo, com previsão de crescimento de apenas 2,6% em 2022 contra 3,6% de seu cenário anterior, de set/21.
Além de ter provocado perdas humanas, uma crise humanitária e o maior movimento de refugiados desde a segunda guerra mundial, a guerra na Ucrânia tem efeitos diretos sobre a economia ucraniana, mas também sobre o desempenho econômico da Rússia e da Bielorrússia, bem como impactos indiretos sobre a economia internacional mediante três principais canais de transmissão, de acordo com o FMI.
O primeiro canal é o impacto sobre o comércio global. Além da desaceleração prevista de 10% em 2021 para 5% em 2022, a guerra reforçou a trajetória altista dos preços das commodities, principalmente energéticas e agrícolas, já que Rússia e Ucrânia são importantes produtores e exportadores de cereais, de energia e de alguns metais que são insumos da produção industrial.
Com isso, a inflação nas economias avançadas (EA) e nas economias de mercado emergente e em desenvolvimento (EMED) não somente está aumentando, mas também seguirá num patamar mais elevado por mais tempo do que no cenário de jan/22 do FMI. O impacto nas EMED será mais intenso, segundo o Fundo, devido à maior participação de energia e alimentos na cesta de consumo da população.
O segundo canal, mais localizado, compreende os vínculos diretos via comércio e remessas de imigrantes com a Rússia e Ucrânia, casos da Bielorrússia e alguns países bálticos e do Cáucaso, que sofrerão uma forte retração da demanda externa e redução nessas remessas.
O terceiro canal é o efeito sobre as cadeias globais de valor. Como as commodities primárias e seus derivados exportados pela Rússia e Ucrânia são insumos dessas cadeias, o conflito está também surtindo impactos em economias sem vínculos comerciais bilaterais com os dois países, reforçando as perturbações e os gargalhos na oferta. Mais recentemente, novos surtos de Covid-19 na China, que tem exigindo lockdown em algumas áreas importantes, dentem a reforçar a desorganização destas cadeias.
Além desses impactos, quatro tendências já em curso, mas na sua maioria intensificadas pela guerra na Ucrânia, estão subjacentes ao cenário do FMI.
• O aperto na política monetária, que se iniciou em algumas EA e EME em 2021, e se intensificou em 2022 com o início da alta da taxa de juros básica pelo Fed em mar/22. Como nas fases anteriores de aperto monetário, as condições monetárias e financeiras para as EMED se deterioraram, mas de forma desigual.
• A retirada dos estímulos fiscais ao longo de 2022 e 2023, diante dos níveis recordes de endividamento atingidos após a pandemia, particularmente nas EA.
• A tendência de desaceleração da economia chinesa, associada à política de tolerância zero ao Covid-19 e à desaceleração do investimento imobiliário.
• A evolução da pandemia da Covid-19, já que o cenário básico supõe que o impacto sanitário e econômico da pandemia se dissipará no segundo trimestre de 2022.
Os impactos da guerra e dessas tendências anteriores são heterogêneos nos principais grupos de economias, bem como nas diferentes regiões. Os principais condicionantes desses impactos, de acordo com o FMI, são a proximidade geográfica, as relações comerciais e financeiras com a Ucrânia e Rússia, a composição das exportações e importações, sobretudo a participação das commodities, o grau de integração no mercado financeiro internacional e de vulnerabilidade externa.
Nas EA, o crescimento previsto pelo Fundo recuará de 5,2% em 2021 para 3,3% em 2022. A área do euro será a mais atingida pela alta dos preços do petróleo e gás natural, por ser importadora líquida de energia e fortemente dependente das importações da Rússia.
No caso dos EUA, que têm vínculos limitados com a Rússia, a desaceleração de 5,7% em 2021 para 3,7% em 2022 decorre da não aprovação do pacote fiscal Build Back Better, das perturbações nas cadeias de oferta globais, do menor crescimento dos parceiros comerciais resultante da guerra, e do aperto monetário em curso.
Nas EMED, a desacelerarão será mais intensa do que nas EA: de 6,8% em 2021 para 3,8% em 2022. Isso porque, segundo o FMI, o impacto direto da guerra, seus canais de transmissão internacional e as demais tendências em curso têm repercussões relativamente maiores nessas economias.
Contudo, os impactos regionais já se mostram heterogêneos em função da interação dos fatores condicionantes mencionados acima. Como esperado, a Europa emergente e em desenvolvimento (que inclui a Ucrânia e a Rússia) sofrerá o maior impacto e será a única no âmbito das EMED que retrairá em 2022 (em -2,9%).
A América Latina e Caribe registrará o segundo pior desempenho econômico, com crescimento de 2,5% em 2022, após a expansão de 6,8% em 2021. Nesse caso, o principal determinante da desaceleração não é a guerra – diante dos vínculos diretos limitados com a Ucrânia e a Rússia -, mas o aperto da política monetária em função das pressões inflacionárias. Em contrapartida, vária economias da região são exportadoras de commodities e se beneficiarão da alta dos preços da energia, alimentos e/ou metais.
O balanço de riscos do cenário atual, alerta o Fundo, tem viés negativo. O FMI aponta oito fatores que podem se auto reforçar e deteriorar ainda mais as perspectivas de curto prazo: agravamento da guerra, aumento das tensões sociais, ressurgimento da pandemia, maior desaceleração na China, aumento das expectativas de inflação de médio prazo, taxas de juros mais elevadas resultando em crises de dívida nas EMED, deterioração do ambiente geopolítico e emergência climática.
Diante desses riscos, o FMI recomenda um conjunto de iniciativas de política, como calibragem da política fiscal, ancoragem das expectativas de inflação e ações em benefício da transformação estrutural e ambiental, para eliminá-los ou mitigá-los e garantir a retomada no curto prazo e a melhora das perspectivas de médio prazo.
Introdução
Esta Carta IEDI apresenta o cenário atual do Fundo Monetário Internacional (FMI) para o desempenho da economia global em 2022 e 2023, divulgado no World Economic Outlook de abr/22.
A primeira seção sumariza este último cenário do Fundo e, a título de comparação, traz também o cenário atualizado da UNCTAD em mar/22, detalhando os canais de transmissão internacional da guerra da Ucrânia e seu impacto diferenciado nas economias avançadas (EA) e nas economias de mercado emergente e em desenvolvimento (EMED).
A segunda seção sumariza os riscos subjacentes a esse cenário e a terceira seção apresenta as recomendações de política do FMI para que a economia global se recupere dos efeitos da guerra e supere os desafios existentes antes da sua eclosão, como a superação definitiva da pandêmica do Covid-19 e questões estruturais, como a desigualdade e a mudança climática.
Cenário para a economia global em 2022-2023
De acordo com o cenário básico do FMI de abril de 2022, após a recuperação global do choque do Covid-19 em 2021 (com um crescimento de 6,1% contra uma contração de 3,3% em 2020), a economia mundial desacelerará para 3,6% no biênio 2022-2023, mesmo patamar registrado em 2018.
A revisão desfavorável das perspectivas no curto prazo – na comparação com o cenário do Fundo de jan/22, um corte de 0,8 ponto percentual (p.p.) para 2022 e de 0,2 p.p. para 2023 – decorre, sobretudo, do impacto da guerra na Ucrânia, mas também reflete outras tendências em curso antes da sua eclosão, várias das quais intensificadas pelo conflito, como detalhado a seguir.A OECD ainda não atualizou suas projeções para o crescimento global, mas o seu Interim Outlook de março (OECD, 2022) compartilha a avaliação do FMI de que a guerra representou um expressivo revés para a recuperação econômica mundial. Já a UNCTAD (2022) divulgou um novo cenário após a eclosão da guerra, mais pessimista que do Fundo (previsão de crescimento de 2,6% em 2022 contra 3,6% em setembro).
Impacto da guerra na Ucrânia
O cenário básico do FMI assume que o conflito continuará limitado à Ucrânia e que as sanções econômicas sobre a Rússia (ao lado dos planos europeus de se tornar independente da energia russa) anunciadas até o final de março não se intensificarão.
Além de ter provocado perdas humanas, uma crise humanitária e o maior movimento de refugiados desde a segunda guerra mundial, a guerra tem efeitos diretos sobre o desempenho econômico desses dois países e da Bielorrússia, bem como impactos sobre a economia internacional mediante quatro principais canais de transmissão.
O primeiro canal é o comercio global, que deve desacelerar de 10% em 2021 para 5% em 2022. As interrupções da produção em função da guerra, as sanções e as restrições de acesso aos pagamentos transfronteiras estão perturbando intensamente os fluxos comerciais, sobretudo de energia e alimentos.
Embora sejam economias relativamente pequenas em termos de produto interno bruto (PIB), Rússia e Ucrânia são importantes produtores e exportadores de cereais e derivados, de energia, bem como de alguns metais, como níquel e paládio (OECD, 2022). Por exemplo, os dois países são responsáveis por 30% da oferta mundial de trigo e cevada e mais da metade de óleo de girassol e a Rússia o principal exportador de gás natural e o segundo maior exportador de petróleo.
O cenário atual do Fundo supõe que o aumento dos preços do petróleo, gás e commodities agrícolas terá continuidade em 2022, mas declinarão em 2023 em diferentes intensidades. A intensidade do impacto sobre os preços das diferentes categorias de commodities, que já estavam em alta desde meados de 2020, dependerá da redução das exportações devido ao conflito e sanções, bem como da elasticidade da oferta e da demanda em cada mercado.
Embora o preço do petróleo tenha subido significativamente após a eclosão do conflito, a existência de capacidade ociosa e a liberação de reservas devem conter a trajetória ascendente no médio prazo. No caso do gás natural, como a infraestrutura para seu transporte é inflexível no curto prazo e a oferta global é menos elástica, as perspectivas são de manutenção de preços elevados por um maior período de tempo.
Já no caso das commodities agrícolas, a trajetória altista deve perdurar ainda mais. Por um lado, sua demanda é pouco elástica, pois em grande parte são bens básicos. Por outro lado, a oferta nos países envolvidos no conflito não se ajustará rapidamente no curto prazo (já que a safra 2022 será afetada pela guerra), além de estar sujeita nos demais países aos choques climáticos cada vez mais frequentes. Adicionalmente, a alta dos preços do petróleo e gás natural pressionam os preços dos fertilizantes, um insumo fundamental da produção agrícola.
O FMI destaca que a forte alta dos preços das commodities ecoa os choques de preços dos anos 1970. Contudo, as pressões inflacionárias, embora preocupantes, devem ser menos intensas no choque atual devido a três fatores:
• menor intensidade de uso do petróleo na produção global;
• redução da presença de indexação nos mecanismos de ajuste salariais;
• maior credibilidade da política monetária associada com um maior número de bancos centrais independentes.
Consequentemente, para o Fundo, as expectativas inflacionárias no médio prazo seguem relativamente ancoradas nas metas dos bancos centrais na maioria dos países.
No curto prazo, contudo, com o impacto da guerra, que reforçou as pressões nos preços da energia e dos alimentos já presentes em 2021, a inflação deve se manter elevada por mais tempo do que no cenário anterior. Para 2022, as previsões atuais são de 5,7% nas EA e 8,7% nas EMED, respectivamente 1,8 p.p e 2.8 p.p superiores que o previsto em janeiro. Em 2023, o FMI prevê uma desaceleração para 2,5% nas EA e para 6,5% nas EMED, respectivamente 0,4 p.p e 1,8% p.p maiores que no cenário precedente.
O impacto diferenciado nos dois grupos de economias decorre da participação relativa dos alimentos na cesta de consumo da população e do tipo de bem consumido. Nas EMED essa participação é maior, especialmente nas economias de baixa renda, que em muitos casos tem dietas concentradas somente num tipo de cereal.
O segundo canal, mais localizado, refere-se aos vínculos diretos via comércio e remessas de imigrantes com a Rússia e Ucrânia. Países que exportam muito para esses dois países, como Bielorrússia, alguns países bálticos e do Cáucaso, sofrerão uma forte retração da demanda externa. Já aqueles que importam da Rússia enfrentarão alta dos preços dos produtos importados e possíveis rupturas de oferta.
Estes efeitos devem ser concentrar em alguns mercados, como metais e minerais, gases nobres e produtos agrícolas, especialmente trigo. Alguns países do Cáucaso e da Ásia Central também serão afetados pela queda das remessas de imigrantes da Rússia.
O terceiro canal é o efeito sobre as cadeias globais de valor. Como as commodities primárias e seus derivados exportados pela Rússia e Ucrânia são insumos nessas cadeias, com efeitos encadeadores a montante (forward linkages) e a jusante (backward linkages), o conflito está também impactando economias sem vínculos comerciais bilaterais com os dois países – onde se concentra, por exemplo a produção de gás neon, insumo da produção de chips de silicone. Com isso, os problemas de oferta desse insumo se agravarão, reforçando os gargalhos na produção de automóveis e eletrônicos. Outros exemplos são a escassez de metais exportados pela Rússia, como paládio e níquel, que aumentará o custo das baterias, e a exportação de fertilizantes de potássio da Bielorrússia.
O quarto canal, até agora menos relevante, é o impacto nos mercados financeiros. As sanções provocaram estresse financeiro em firmas com pagamentos internacionais pendentes ou ativos no exterior, problemas operacionais no funcionamento dos mercados e maior volatilidade, bem como aumentaram os riscos de contraparte e de falência soberana da Rússia.
Contudo, as conexões financeiras diretas entre a Rússia e as principais economias parecem relativamente pequenas e concentradas em poucos países, sobretudo da Europa, com destaque para os bancos italianos e austríacos. Mesmo nesses casos, o risco de contágio é baixo pois a exposição direta ocorre mediante as subsidiárias locais.
Todavia, este canal financeiro pode se intensificar no caso de aumento da incerteza geopolítica que resulte numa reavaliação dos riscos pelos investidores, com repercussões adversas principalmente nas EMED. Outras fontes potenciais de perturbação são a retirada dos ativos russos dos índices de referência de ações e bônus dedicados a economias de mercado emergente (EME) e aumento da volatilidade nos mercados de commodities.
Demais tendências subjacentes ao cenário básico
Além da guerra na Ucrânia, quatro tendências precedentes ao conflito, mas na sua maioria acentuadas por ele, são consideradas no cenário atual do FMI.
1. Aperto monetário e volatilidade nos mercados financeiros
O aperto na política monetária em algumas EA iniciou-se no último trimestre de 2021, em resposta à trajetória ascendente da inflação, resultando numa rápida alta nas taxas de juros dos títulos soberanos. No caso dos Estados Unidos, em março o Federal Reserve (Fed) aumentou pela primeira vez a taxa de juros básica (de 0,25% para 0,5%) desde 2018 em resposta à maior taxa de inflação em 39 anos (7% a.a. em dezembro de 2021). O cenário básico do FMI prevê a continuidade da alta da taxa de juros e início da desmontagem da política de afrouxamento quantitativo ao longo do ano.
Nas EMED, a mudança na orientação da política monetária também começou em 2021 – mas com antecedência em relação às EA – e vários bancos centrais iniciaram a fase de alta da taxa de juros básica em 2022. Uma exceção é a China, onde a inflação segue baixa e a taxa de juros foi reduzida para estimular a retomada econômica.
Expectativas de políticas monetárias mais restritivas nas EA e as incertezas provocadas pela guerra aumentaram a volatilidade nos mercados financeiros e o movimento de reprecificação dos ativos, reforçando a elevação já em cursos das taxas de juros dos títulos soberanos, como detalhado no relatório de estabilidade financeira também divulgado em abril (IMF, 2022b).
Como esperado, os prêmios de risco dos títulos soberanos e dos credit default swaps (CDS). registraram maiores altas nos casos da Ucrânia, Bielorrússia e Rússia (como reflexo das sanções e perturbações na intermediação financeira). Nas demais EME, os mercados têm as diferenciado de acordo com a proximidade geográfica, vínculos via comércio exterior e remessas de imigrantes e exposição às commodities exportadas pela Rússia e Ucrânia. Assim, os prêmios de risco também se elevaram, embora em menor medida, nas EME da Europa emergente, do Caúcaso, Ásia Central e Norte da África, bem como em economias em desenvolvimento importadoras líquidas de alimentos e energia e com maior vulnerabilidade externa, sobretudo de baixa renda.
A saída de fluxos de capitais das EME no início de março foi tão intensa e rápida como a registrada no momento da eclosão da pandemia do Covid-19 no final de fevereiro de 2020, mas enquanto nesse momento a liquidação de ativos foi generalizada, no choque da guerra da Ucrânia ela concentrou-se nas mesmas economias. Ademais, a situação estabilizou-se mais rapidamente, com um gradual retorno gradual desses fluxos desde meados de março.
Um movimento de fuga para a qualidade generalizado não está descartado. De forma geral, antes da eclosão da guerra, a trajetória ascendente dos prêmios de risco parecia similar às observadas nas fases anteriores de aperto monetário nas EA (2013 e 2018). Todavia, no contexto atual, a diferenciação entre as EME e a dispersão dos prêmios de risco tem sido maior como reflexo das circunstâncias domésticas específicas, dentre as quais o acúmulo de dívida pelo setor privado e os passivos contingentes do setor público.
Episódios anteriores indicam que um rápido (e/ou inesperado) aumento das taxas de juros nas EA, sobretudo nos Estados Unidos, provoca saídas de capitais das EMED, alta dos prêmios de risco, depreciações cambiais e condições financeiras externas mais apertadas. A intensidade desses efeitos dependerá do grau de exposição financeira e comercial às EA. Países com elevados níveis de endividamento externo e necessidade de financiamento são mais vulneráveis. Todavia, os altos níveis atuais de endividamento tornam as EMED de forma geral mais vulneráveis do que nos episódios anteriores.
A pandemia resultou em patamares inéditos de endividamento soberano. No caso das economias de mercado emergente e de renda média, a razão dívida soberana/PIB atingiu em média 60% em 2021 contra 40% em 2013. Nas economias em desenvolvimento de renda baixa, que têm uma capacidade menor de endividamento, essa razão quase dobrou no mesmo período pelo mesmo critério. Com o aumento das taxas de juros e do custo de rolagem, os governos enfrentarão dificuldades crescentes de pagar o serviço da dívida.
Já o “amortecedor externo”, ou seja, o estoque de reservas internacionais, continua em patamares robustos na maioria dos casos de acordo com algumas métricas. Por exemplo, a razão reservas/importações indica que a situação é mais favorável hoje do que nos dois episódios anteriores. Surpreendentemente, a diferença é mais expressiva nas economias de baixa renda onde essa razão registrou a maior alta, como reflexo, em parte, da alocação recorde de Direitos Especiais de Saque (DES) em agosto de 2021. Em contrapartida, quando se considera a razão reservas/serviço da dívida externa, a situação melhorou timidamente nas economias de renda média e se deteriorou nas de renda baixa.
Outras diferenças em relação aos episódios precedentes ampliam ainda mais a vulnerabilidade das EMED ao aumento da aversão aos riscos dos investidores globais.
Em primeiro lugar, um maior número de países encontra-se em situações de estresse: em torno de 60% das economias de baixa renda já estão insolventes ou com alto risco de insolvência.
Em segundo lugar, a perspectivas são de desaceleração das maiores EME, principalmente da China, um dos motores de crescimento para as EMED. Em terceiro lugar, as tensões geopolíticas mais acirradas tornam o contexto externo mais incerto. Em quarto lugar, preços mais elevados dos alimentos e da energia aumentam o risco de instabilidade social.
2. Retirada dos estímulos fiscais
A margem de manobra da política fiscal reduziu-se em vários países devido aos gastos relacionados com a pandemia do Covid-19 e a baixa arrecadação fiscal no biênio 2020-21. Diante dos crescentes custos de endividamento, esses estímulos devem diminuir de forma geral em 2022 e 2023, particularmente nas EA na esteira da retirada das medidas emergenciais em resposta à pandêmica.
3. Desaceleração econômica na China
A desaceleração da economia chinesa tem amplos impactos na Ásia e nos exportadores de commodities. A combinação de variações mais contagiantes do Covid-19 e a política de tolerância zero ao vírus traz a perspectiva de mais confinamentos com efeitos negativos sobre o consumo. Adicionalmente, as medidas restritivas em relação às construtoras privadas mantêm o investimento imobiliário moderado.
4. Pandemia Covid-19 e acesso às vacinas
A nova variante Omicron resultou em novas restrições à mobilidade que, ao lado de distúrbios e gargalhos nas cadeias globais de produção, contiveram a atividade econômica e adicionaram pressões inflacionárias. Essas restrições reduziram-se à medida que a nova onda da pandemia perdeu força e o número global de mortes por semana diminuiu. Além disso, o risco de doenças graves e mortes mostrou-se menor no caso dessa variante, especialmente para os vacinados com reforço da terceira dose.
Diante dessas tendências, o cenário básico supõe que o impacto sanitário e econômico da pandemia se dissipará no segundo trimestre de 2022 e que as hospitalizações e mortes recuarão para baixos patamares na maioria dos países no final do corrente ano. Uma hipótese-chave é que não surjam variantes que exijam novas restrições.
Uma hipótese adicional é que as economias de baixa renda não atingirão a meta de 70% da população vacinada com duas doses até o final de 2022. Com isso, a possibilidade de novas ondas é considerada nesse cenário, mas com impacto reduzido na atividade econômica em comparação com as ondas anteriores.
Desempenho por grupo econômico
Os impactos da guerra na Ucrânia e dos demais fatores que condicionam o cenário básico do FMI são heterogêneos nos dois principais grupos de economia, bem como nas diferentes regiões. Os principais condicionantes desses impactos são a proximidade geográfica, as relações comerciais e financeiras com a Ucrânia e Rússia, a composição das exportações e importações, sobretudo a participação das commodities, o grau de integração no mercado financeiro internacional e de vulnerabilidade externa.
Nas EA, o crescimento declinará de 5,2% em 2021 para 3,3% em 2022, um recuo de quase 2 p.p (e 0,6 p.p inferior à projeção de janeiro). A área do euro será a mais atingida pela alta dos preços do petróleo e gás natural provocada conflito por ser importadora líquida de energia e fortemente dependente das importações da Rússia. Com isso, a região sofrerá uma deterioração dos seus termos de troca que se traduzirá em menor crescimento econômico e maior inflação.
A guerra e as sanções também afetaram a produção de alguns insumos industriais, como já mencionado, reforçando o impacto negativo das perturbações já presentes nas cadeias globais sobre algumas indústrias. Consequentemente, o crescimento do PIB regional desacelerará para 2,8% em 2022 (2,5 p.p inferior ao registrado em 2020), com os efeitos mais intensos na Alemanha e Itália (crescimento de, respectivamente, 2,1% e 2,3% em 2022) cujos setores manufatureiros são relativamente maiores e a dependência da energia russa mais expressiva. Contudo, o cenário supõe que esse impacto negativo será atenuado por medidas fiscais contracíclicas.
O Reino Unido avançará a uma taxa mais elevada (3,7%), mas a desaceleração frente à 2020 será maior (3,7 p.p.) devido à perda de ritmo no consumo provocada pela inflação e o aperto da política monetária iniciado no último trimestre de 2021. A taxa de crescimento na economia americana será igualmente de 3,7% frente a 5,7% em 2021, o que representa uma menor desaceleração frente ao ano anterior na comparação com a economia britânica.
No caso dos Estados Unidos, que têm vínculos limitados com a Rússia, o cenário de janeiro já supunha uma desaceleração para 4% como reflexo da não aprovação do pacote fiscal Build Back Better e das perturbações nas cadeias de oferta globais. O corte adicional de 0,3 p.p decorre das hipóteses de aperto monetário mais rápido do que o então previsto (diante das sinalizações do Fed nesse sentido no intervalo de tempo entre os dois cenários em função do aumento da inflação) e do impacto do menor crescimento dos parceiros comerciais resultante da guerra.
No âmbito das principais EA, a economia japonesa registrará mais uma vez o menor ritmo de expansão (2,4%), mas, ao contrário dos seus congêneres, com aceleração de 0,8 p.p frente à 2021 devido à orientação expansionista da política monetária, em direção contrária às demais EA, já que as relações comerciais com a Ucrânia e Rússia são mais limitadas. Os canais de transmissão sobre o Japão serão perda de ritmo do consumo e investimento devido ao aumento do preço do petróleo e redução das exportações líquidas.
As EMED registrarão uma desaceleração mais intensa que as EA – de 6,8% em 2021 para 3,8% em 2022 – e a revisão do cenário em relação a janeiro foi igualmente maior (1 p.p.). Isso porque o impacto direto da guerra, seus canais de transmissão internacional e as demais tendências em curso têm repercussões relativamente maiores nessas economias.
As EMED estão enfrentando choques comuns (elevação dos preços das commodities, condições monetárias e financeiras mais restritivas e desaceleração da economia chinesa), contudo os impactos regionais têm sido heterogêneos em função da interação dos fatores condicionantes mencionados acima.
Como esperado, o impacto em termos de desempenho econômico será maior na Europa emergente e em desenvolvimento, que inclui a Ucrânia e a Rússia. A região será a única no âmbito das EMED que registrará contração em 2022 (de 2,9%) após uma expansão de 6,7% em 2021.
Além do colapso da economia ucraniana (retração prevista de 35%) e da forte queda do PIB da Rússia (-8,5%), as economias do báltico sofrerão o efeito dos altos preços da energia sobre a demanda doméstica e redução da demanda externa da Rússia. Adicionalmente, a massa de refugiados pressionará os serviços sociais, mas o aumento da força de trabalho pode contribuir para o crescimento e arrecadação tributária no médio prazo.
A América Latina e Caribe será a região em desenvolvimento com o segundo pior desempenho econômico, com crescimento de 2,5% em 2022, após a expansão de 6,8% em 2021 (inferior somente à registrada na Ásia em Desenvolvimento). Contudo, nesse caso, o principal determinante da desaceleração não é a guerra – diante dos vínculos diretos limitados com a Ucrânia e a Rússia –, mas o aperto da política monetária em função das pressões inflacionárias que tem efeitos negativos sobre a demanda privada, sob liderança das principais economias da região.
No Brasil, o banco central respondeu à alta da inflação com sucessivos aumentos da taxa de juros básica em 2021 (um aumento acumulado de 9,75 p.p em dezembro frente ao mesmo mês do ano anterior). No México, movimento similar, mas menos intenso, foi observado.
O FMI também aponta o menor crescimento projetado para os Estados Unidos e a China, importantes parceiros comerciais dos países da América Latina, como um determinante adicional da desaceleração. Todavia, vale notar que em relação do cenário de janeiro, a taxa de crescimento projetada aumentou 0,1 p.p. pois a alta dos preços das commodities favorece várias economias da região, que são exportadoras de petróleo, alimentos e/ou metais.
A África subsaariana desponta na terceira posição do ranking, com crescimento projetado de 3,8%, também 0,1 p.p. superior ao previsto no cenário de janeiro devido ao efeito positivo da alta do preço do petróleo no desempenho dos países exportadores, como Nigéria. Contudo, nas demais economias da região, o principal canal de transmissão do conflito é o aumento dos preços dos alimentos, cuja participação no consumo da população é muito alta. Preços elevados desses bens básicos significam menor poder de compra e menor demanda doméstica.
Assim como no caso da África subsaariana, no Oriente Médio e Ásia Central o impacto da guerra têm sido favorável em alguns países e desfavorável em outros. No primeiro grupo, destaca-se a Arábia Saudita, principal economia da região e exportadora líquida de Petróleo, que deve crescer 7,6% contra 3,2% em 2002 e uma previsão de 4,8% em janeiro. Em contrapartida, várias economias da região, especialmente as importadoras de petróleo, são negativamente afetadas pela alta dos preços dos alimentos, condições financeiras globais restritivas e redução do turismo e da demanda externa da Rússia e Ucrânia.
A Ásia emergente e em desenvolvimento mantém-se na liderança em termos de crescimento econômico, mas desacelerará 7,3% em 2021 para 3,8% em 2022 (1 p.p. inferior que a projeção de janeiro). O principal determinante dessa trajetória, sobretudo para a Ásia emergente, é a perda de dinamismo da economia chinesa. O segundo determinante é o impacto negativo da guerra na demanda externa da região.
Balanço de riscos
O balanço de riscos do cenário atual tem viés negativo. O FMI aponta oito fatores de riscos que podem se auto reforçar e deteriorar as perspectivas de curto prazo:
• Agravamento da guerra: os impactos diretos e internacionais do conflito se intensificarão, incluindo a intensificação da crise humanitária e do aumento das sanções que pode reforçar as rupturas do comércio exterior (como o fornecimento de energia para a Europa), as perturbações na oferta e a alta dos preços das commodities. Ademais, embora os vínculos financeiros externos com instituições russas sejam pequenos, o não-pagamento de dívidas pode ter impacto nos balanços de não-residentes e revelar exposições indiretas até então encobertas, o que pode acentuar a reprecificação dos ativos das EME;
• Aumento das tensões sociais: a guerra aumentou a probabilidade de tensões sociais no curto prazo em função do impacto nos preços dos alimentos e da energia, sobretudo nas EMED com margem de manobra fiscal limitada e maior participação desses itens na cesta de consumo;
• Ressurgimento da pandemia: novas ondas do Covid-19 podem surgir, associadas a subvariantes do Omicron mais letais ou contagiosas, como indica o aumento recente dos números de casos na China e demais países da Ásia,
• Maior desaceleração na China: uma perda de dinamismo prolongada da economia chinesa pode expor fragilidades estruturais, como elevados passivos dos governos locais, alta alavancagem das construtoras e fragilidade do sistema bancário. Uma menor demanda externa chinesa terá impactos negativos nas economias em desenvolvimento do sudeste asiático. Além disso, a combinação de variantes mais transmissíveis do vírus com a política de Covid-19 zero pode continuar a conter a atividade econômica e resultar em novas pertubações de oferta.
• Aumento das expectativas de inflação de médio prazo: as expectativas inflacionárias seguem relativamente ancoradas, com exceção de poucas EMED. Contudo, diante do patamar já elevado da inflação e preços dos alimentos e da energia em elevação, essas expectativas podem se desancorar. Adicionalmente, aumentos de salários, que continuam correndo atrás da inflação na maioria dos países, podem adicionar pressões sobre o nível geral de preços. Neste contexto, a resposta da política monetária deverá ser mais agressiva do que o suposto no cenário atual, impactando negativamente o crescimento.
• Taxas de juros mais elevadas resultando em crises de dívida: diante dos níveis recordes de endividamento, a alta das taxas de juros pressionará ainda mais os orçamentos públicos e exigirá arcabouços fiscais críveis para a consolidação fiscal no médio prazo. Caso o ajustamento não tenha sucesso e a credibilidade desses arcabouços seja questionada, uma crise de confiança pode eclodir desencadeando saída de capitais, particularmente em EME, e crises de dívida simultâneas. A probabilidade desse evento aumentará se as EA tiverem que reagir mais agressivamente às pressões inflacionárias do que previsto no cenário atual
• Deterioração do ambiente geopolítico: no longo prazo, a guerra na Ucrânia pode desestabilizar as regras que governam as relações internacionais desde a segunda guerra mundial, especialmente se o conflito se prolongar por muito tempo. As possíveis consequências são: aumento da polarização internacional que agravará a crise humanitária e impedirá a integração econômica global que é essencial para a prosperidade de longo prazo; redução da transferência de tecnologia e surgimento de distintas redes de produção e padrões tecnológicos, com reversão dos ganhos trazidos pela globalização se os países adotarem políticas protecionistas; reorganização do sistema monetário internacional, com a segmentação dos ativos de reserva e emergência de sistema alternativos de pagamento interfronteiras. Neste contexto, a cooperação essencial para resolver desafios estruturais de longo-prazo, como resolução de dívida e mudança climática (como detalhado a seguir), será erodida. Se este risco se materializar, provavelmente a economia global passará por uma transição para uma nova realidade política, com maior volatilidade financeira e flutuações dos preços das commodities e deslocamentos da produção e do comércio.
• Emergência climática: os efeitos do aquecimento global já são evidentes e apesar de alguns progressos em direção à transição verde, de acordo com as tendências atuais as emissões globais ultrapassarão as metas do acordo de Paris no final do século, resultando numa catástrofe climática. A guerra na Ucrânia pode induzir, no curto prazo, um aumento do uso de combustíveis fósseis. No longo prazo, o impacto do conflito e razões estratégicas para a independência energética podem acelerar os investimentos em energias renováveis. As tensões geopolíticas, contudo, ameaçam a cooperação internacional necessária para uma transição energética ordenada.
Recomendações de política
A guerra na Ucrânia acentuou dois dilemas de política econômica no curto prazo: por um lado, combater a inflação ou garantir a recuperação da pandemia; por outro lado, atenuar a perda de poder de compra daqueles mais atingidos pela alta do custo de vida ou reconstituir os “amortecedores fiscais”. Ao mesmo tempo, a pandemia ainda não foi totalmente superada, questões estruturais, como a desigualdade e a mudança climática seguem sem resolução e a margem de manobra da política fiscal é menor diante dos altos níveis de endividamento.
A guerra também trouxe novos desafios políticos em âmbito multilateral, como a crise humanitária na região, e deixará sequelas mais duradouras que se somam àquelas decorrentes da pandemia do Covid-19 (ver Carta IEDI n.1115).
Essas sequelas serão mais intensas nas EMED, que não devem retornar ao patamar pré-pandemia até 2024 (período considerado no cenário básico do Fundo) devido às maiores perdas de capital humano e investimento, menor capacidade de adaptação ao trabalho à distância e à baixa taxa de vacinação. Em contrapartida, a crise do Covid-19 deve efeitos mais transitórios sobre as EA. Os Estados Unidos devem retomar esse patamar no final de 2022, enquanto nas demais EA a queda frente a esse patamar reduzirá, embora o impacto da guerra pode retardar o processo na Europa.
Diante esses desafios no curto e no médio prazo, o FMI recomenda um conjunto de iniciativas de políticas para garantir a retomada no curto prazo e a melhora das perspectivas de médio prazo, detalhadas a seguir.
1. Combate à inflação
A alta da inflação global reflete desequilíbrios entre a oferta e a demanda provocados pela pandemia e intensificados pela recuperação de 2022. Contudo alguns fatores subjacentes às pressões inflacionárias atuais – como os elevados preços da energia e alimentos – refletem choques globais e estão em grande medida fora do controle dos bancos centrais. Além disso, o impacto da guerra na inflação será diferenciado entre os países dependendo dos vínculos comerciais e financeiros, exposição a commodities e pressões inflacionárias pré-existentes.
Assim, a resposta apropriada de política monetária também variará entre os países, mas de forma geral as autoridades monetárias devem monitorar o pass-through dos preços internacionais para as expectativas de inflação para calibrar sua resposta e ajustar a orientação da política monetária de acordo com a evolução do comportamento da inflação.
A evolução das expectativas inflacionárias deve se manter ancoradas para garantir a credibilidade do regime monetário. Nos países onde essas expectativas se elevaram de forma mais intensa, os bancos centrais devem enfatizar nos seus comunicados que a estabilização dos preços é um objetivo-chave e, se necessário, adotar medidas para conter as pressões inflacionárias.
Nos Estados Unidos, as pressões inflacionárias se intensificaram e se tornaram mais generalizadas mesmo antes da guerra, e o crescimento dos salários nominais têm sido robusto. Neste contexto, o aperto monetário é recomendado para interromper as espiral preços-salários. No caso das EME, vários bancos centrais já agiram agressivamente para conter a inflação em 2021, enquanto outros iniciaram recentemente o aperto monetário.
Contudo, política monetárias mais restritivas nas EA podem desencadear depreciações cambiais e, com isso, deterioração das expectativas inflacionárias de países emergentes, o que exigirá aumentos adicionais da taxa de juros básica. Em contrapartida, nos países onde crescimento econômico será mais afetado pela guerra, mas que também enfrentam pressões inflacionárias, os bancos centrais devem calibrar o aperto monetário de acordo com a intensidade do impacto na atividade econômica e sinalizar claramente que mudará a orientação da política monetária se necessário.
2. Resposta às condições financeiras mais restritivas e à incerteza geopolítica
As autoridades regulatórias devem agir preventivamente e reforçar tanto os instrumentos de regulação macroprudencial para conter fontes de vulnerabilidade financeira, como os mecanismos de resolução de situações de insolvência. Essa ação é particularmente importante no contexto atual de aperto monetário e incerteza geopolítica que aumenta os riscos de súbitas reprecificações de preços que podem acentuar essas vulnerabilidades e desencadear uma crise sistêmica.
No caso das EME, os agentes com dívida em moeda estrangeira devem estender a maturidade da dívida e conter o descasamento de moedas nos seus balanços para reduzir os riscos de rolagem. Taxas de câmbio flexíveis também contribuem para a absorção de choques externos. Todavia, em países com mercados cambiais pouco profundos, súbitas saídas de fluxos de capitais podem ameaçar a estabilidade financeira. Nesses casos, intervenções cambiais podem ser necessárias. Em situações de crise iminente, medidas de gestão dos fluxos de capitais podem ser adotadas, mas não devem ser substitutas de ajustes necessários na política macroeconômica.
3. Política fiscal
A orientação da política fiscal deve considerar a exposição à guerra, a situação da pandemia e a intensidade da recuperação econômica. Como já mencionado, as dívidas públicas encontrem-se em patamares recordes, mas a necessidade de consolidação fiscal não deve impedir os governos de priorizarem gastos para proteger e ajudar a população vulnerável afetada pela guerra e a pandemia.
Nos países com elevadas pressões inflacionárias, medidas focalizadas podem ser utilizadas para aliviar a restrição orçamentária das famílias. Contudo, como no caso das medidas de transferência de renda associada à pandemia, esses gastos devem conceder o máximo de alívio ao menor custo possível. Nos países que estão recebendo significativo fluxo de imigrantes, o apoio à integração pode ser financiado por recursos multilaterais.
No caso dos gastos associados à pandemia, o financiamento da produção e distribuição de vacina, campanhas de promoção da vacinação, e testes e terapias devem ser mantidos. Já as transferências diretas associadas a pandemia (tal como o auxílio emergencial do Brasil) devem ser mais bem direcionadas. Nos países onde a pandemia está se dissipando, as medidas de suporte devem ser retiradas para recuperar a margem de manobra fiscal.
As firmas afetadas pelas perturbações relacionadas ao conflito, mas cujas operações sejam viáveis no longo prazo, podem necessitar de apoio temporário mediante garantias de crédito e transferências. Ademais, o período pós-pandemia provavelmente requererá realocação intersetorial da força de trabalho. Políticas de auxílio de renda e direcionadas ao mercado de trabalho devem ser desenhadas para prover uma rede de segurança para os trabalhadores em transição sem afetar o crescimento futuro do emprego.
A capacidade de financiar essas iniciativas dependerá da margem de manobra fiscal existente. Essa margem de manobra pode ser ampliada mediante medidas de mobilização de recursos (como aumento da base tributária), cortes de gasto (como redução de subsídios) e aperfeiçoamento da gestão das finanças públicas.
Além disso, vários países precisarão desenvolver planos críveis para estabilizar as contas públicas no médio prazo e, assim, abrir espaço para gastos prioritários no médio prazo – particularmente as EMED que se deparam com a perspectivas de maior custo de endividamento. Arcabouços fiscais com regras simples que garantam a sustentabilidade da dívida, mas flexíveis suficientemente para enfrentar choques (incluindo cláusulas de escape bem desenhadas) podem ajudar a atingir esse objetivo.
4. Políticas sanitárias
A pandemia ainda não foi totalmente superada e o vírus Covid-19 pode continuar presente por um longo período de tempo. A melhor defesa é garantir que todos os países tenham igual acesso a um “kit de ferramentas”: vacinas, testes e tratamento. Contudo, a distribuição desse kit continua ocorrendo em ritmo desigual. Manter esse kit atualizado à medida em que o vírus sofre mutações requererá investimentos em pesquisa médica e sistemas de saúde que cobram toda população.
5. Estímulo à mudança estrutural
A mudança estrutural é essencial para a retomada do crescimento no contexto pós-pandemia nas EMED. Para isso, será necessário o desenvolvimento das tecnologias de comunicação digital, assim como treinamento dos trabalhadores para permitir sua participação na economia digital.
A pandemia também interrompeu o aprendizado de várias crianças, sobretudo nas economias em desenvolvimento de baixa renda devido à ausência de alternativas de ensino virtual. Iniciativas são necessárias para contrabalançar essas perdas de aprendizado que podem afetar negativamente a produtividade, os salários e o crescimento.
No curto prazo, a redução das barreiras tarifárias e não-tarifárias pode contribuir para uma alocação mais eficiente dos recursos e para aliviar os gargalhos de oferta e as pressões inflacionárias.
6. Resposta à emergência climática
A guerra da Ucrânia reforçou ainda mais a urgência da substituição da energia fósseis por fontes renováveis e de reduzir a vulnerabilidade às flutuações dos preços internacionais. Em âmbito doméstico, a política fiscal pode contribuir para essa transição no médio prazo mediante políticas de precificação do carbono (ou mecanismos equivalentes), reforma nos subsídios a combustíveis fósseis para induzir a realocação dos investimentos privados e investimento público em infraestrutura para reforçar os incentivos sem adicionar pressões nos preços da energia.
Parte da receita fiscal deve se direcionar à compensação daqueles que sofrerão perdas com a transição energética. Reformas quando os preços desses combustíveis estão elevados são impopulares, mas subsídios permanentes à energia fóssil (ou alívio de endividamento) motivados por choques de preços precisam ser evitados.
7. Cooperação multilateral
Diante da natureza internacional de vários dos desafios políticos, a cooperação internacional e a atuação das agências multilaterais serão crucial. As prioridades são:
• Resposta coordenada à crise humanitária: a magnitude dos fluxos de refugiados da Ucrânia requer uma resposta coordenada. Diante do maior impacto nos países vizinhos, instituições europeias e multilaterais devem prover assistência financeira tanto emergencial como para facilitar a integração dos imigrantes que não puderem retornar ao seu país de origem. Ademais, quando a guerra terminar, apoio internacional coordenado será necessário para viabilizar a reconstrução;
• Manter a liquidez no sistema financeiro global: a coordenação internacional também será necessária para prover liquidez emergencial para as EMED durante a fase atual de aperto monetário. Para tanto, os bancos centrais devem estar preparados para ativar suas linhas de swap e as linhas de assistência financeira do FMI devem continuar contribuindo para a correção dos ajustes macroeconômicos e para criar as condições para o crescimento sustentável e inclusivo no médio prazo;
• Garantir um sistema ordenado de resolução de dívida: alguns países enfrentam problemas de solvência externa e não somente de liquidez. Nesses casos, uma resolução de dívida ordenada é necessária. Embora o G20 tenha instituído um arcabouço coerente para essa resolução em âmbito internacional (o Common Framework for Debt Treatments), essa iniciativa deve ser acelerada pois somente três países aderiram até agora.
• Políticas climáticas multilaterais: há uma grande distância entre as ações necessárias para evitar a catástrofe climática e as políticas efetivas adotadas. É necessário ampliar as ambições e as ações para reduzir essa distância, com as EA implementando os maiores cortes de emissões e as EMED aumentando seus compromissos. Regimes internacionais, como pisos de preço para grandes emissores e imitativas para ampliar o financiamento à transição verde podem ser necessárias para endereçar questões de competitividade e incertezas políticas que dificultam ações unilaterais
• Provisão de bens de saúde pública global: com a superação da pandemia, a atenção deve ser direcionada para outras áreas de saúde pública que não receberam prioridade nos últimos dois anos, como malária e tuberculose. Neste contexto, financiamento dos doadores internacionais é uma prioridade urgente. Melhor coordenação entre ministros das finanças e da saúde também é essencial para aumentar a resiliência dos sistemas da saúde.
• Cooperação na taxação e comércio interfronteiras: governos devem seguir contribuindo em questões tributárias internacionais para apoiar as receitas e a equidade, bem como evitar barreiras ao comércio internacional e disputas comerciais.
Referências
IMF (2021A) World Economic Outlook, cap. 1, Abril.
IMF (2021b) Global Financial Stability Report, cap. 1, Abril.
OECD (2022) Economic Outlook, Interim Report, Abril.
UNCTAD (2021) Trade and Development Report update, Set.
UNITED NATIONS (2022) Global Impact of war in Ukraine on food, energy and finance systems, Brief 1, Abril.