IEDI na Imprensa - Em copo d’água
Carta Capital
A economia começa a sair do marasmo e o mercado já alerta, sem necessidade, para o risco de a inflação sair do controle
Carlos Drummond
Viciados há mais de dez anos em baixo crescimento, os agentes do mercado e a mídia tremem na base quando a economia ameaça sair do marasmo, caso do primeiro trimestre, mas, segundo vários economistas, não há motivos para maiores preocupações. A inquietação vem do receio de que a capacidade instalada estaria atingindo seu limite, o que significa necessidade de novos investimentos, de que o mercado de trabalho está aquecido, portanto, com tendência de elevação dos salários, e a inflação de serviços mostra resiliência. Essa confluência, ao ver de alguns, é risco certo, ou quase certo, do desencadeamento de pressões inflacionárias de difícil controle.
No sentido oposto existem, porém, melhores condições de aumento do investimento e da oferta, com a depreciação superacelerada para bens de capital, o início da Nova Política Industrial e o aumento do investimento em várias frentes. É preciso considerar ainda que grande parte do receio provém da visão ortodoxa dominante no sistema financeiro e no Banco Central, de que diante do risco inflacionário é preciso desacelerar a economia por meio de um choque monetário, leia-se aumento de juros, e fiscal, isto é, com corte de gastos, isso tudo para reduzir a demanda por bens e serviços. Uma visão, é importante ressaltar, cada vez mais questionada, pelos fatos e no debate econômico, no País e no resto do mundo.
A previsão de alta do PIB este ano melhorou pela sétima semana seguida. De acordo com o Boletim Focus divulgado pelo Banco Central na terça-feira 2, a estimativa de crescimento passou de 1,85% para 1,89%. Segundo o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados, a economia gerou, em fevereiro, 306.111 vagas formais de trabalho, um salto em relação aos 252.487 postos de trabalho com carteira assinada abertos no mesmo mês do ano passado e bem acima da projeção do mercado, de 236 mil novas vagas. O Ministério do Trabalho prevê a criação de um total de mais de 2 milhões de empregos neste ano. O consumo tende a prosseguir em alta devido à ampliação do mercado de trabalho, ao Bolsa Família e à queda da inflação. Há um aumento da propensão de gastos das famílias com bens de maior valor agregado, como móveis e eletrodomésticos, nos próximos 12 meses, identificou pesquisa da Confederação Nacional da Indústria. Segundo a Fiesp, a resposta da produção industrial ao movimento de queda da taxa de juros tende a ganhar força na segunda metade do ano, devido aos efeitos defasados da política monetária e à expansão da massa salarial. A entidade projeta um aumento de 2,2% da produção industrial em 2024.
A previsão de alta do PIB melhorou pela sétima semana seguida, segundo o Boletim Focus
Na segunda-feira 1º, a alta do dólar para 5,05, na maior elevação em seis meses, refletia a melhora das perspectivas da indústria dos EUA acima do esperado, motivo suficiente, segundo os agentes do mercado, para o Fed atrasar o início do ciclo de corte da taxa de juros, com retração do fluxo de crédito e investimento no exterior. Qualquer semelhança com o processo brasileiro não é coincidência, mas convergência de visões sobre o funcionamento da economia, assunto a ser retomado adiante.
No Brasil, o BC interveio no mercado de câmbio para conter a valorização da moeda estadunidense. O efeito dos receios do possível atraso na redução dos juros nos EUA e da redinamização da economia brasileira foi uma diminuição das perspectivas de queda dos juros para 9% até o fim do ano, prevista pelo Relatório Focus, que ainda confirmava, contudo, essa perspectiva na edição divulgada na terça-feira.
“Mesmo que haja sinais recentes de que o Banco Central pode desacelerar o ritmo de queda da taxa básica de juros, ainda há efeitos da redução anterior que devem chegar ao tomador final. Além disso, o fator negativo para o financiamento das empresas provocado pelos problemas na Lojas Americanas não se repete em 2024. Isso tende a melhorar as condições de financiamento corporativo e melhorar os mercados de bens duráveis”, chama atenção Rafael Cagnin, economista-chefe do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial, o IEDI. O acompanhamento feito pelo BC, cabe acrescentar, mostra que os volumes de descontos de duplicatas e de antecipação de recebíveis estão retornando aos patamares anteriores aos da crise da Americanas, com forte efeito no comércio.
Outros fatores favoráveis, sublinha Cagnin, incluem a depreciação acelerada para bens de capital, que facilita a renovação de máquinas das indústrias, mas também as linhas de financiamento mais baratas do BNDES. Tudo isso em uma base baixa de comparação, dado o recuo do investimento em 2023. Para a indústria, prossegue o economista do IEDI, a produção de bens de capital industrial completou dois anos de recuo sistemático, sugerindo que o investimento do setor está deprimido há um bom tempo. Os dados de utilização de capacidade convergem para a necessidade de recompor um pouco o investimento.
Há aspectos positivos e negativos a serem considerados, sublinha Cagnin. Os juros americanos e seus efeitos sobre a elevação das taxas longas no Brasil, o ritmo de crescimento mundial, o cumprimento das “metas” de resultado primário que o próprio governo sinalizou são fatores adversos. Por outro lado, há avanços importantes como a reforma tributária, cuja alíquota-padrão, se não for elevada pela amplitude de itens isentos ou com redução, pode fortalecer a confiança.
Estabelecer uma relação direta entre o aumento da utilização da capacidade instalada e da geração de empregos e o desencadeamento de pressões inflacionárias de difícil controle chega a ser “esquisito”, segundo Igor Rocha, economista-chefe da Fiesp. “Não tem essa relação direta entre emprego e inflação. Colocar de forma direta é muito simplista, essa relação não é automática. É preciso considerar se há capacidade ociosa e um conjunto de outras questões também. Há o fator China, que exporta bastante e contribui para a deflação global. De forma que tem de ir com um pouco de cautela”, ressalta Rocha. Em relação ao risco inflacionário, “claro que tem de ser analisada sempre a evolução, é preciso ficar alerta, sem sombra de dúvida, mas eu não vejo isso neste momento, não.”
A relação entre nível de emprego e taxa de inflação não é tão direta como se supõe
Em março deste ano, os indicadores de expectativas da indústria sinalizavam uma retração no otimismo dos empresários industriais, aponta uma sondagem feita pela Confederação Nacional da Indústria. As expectativas sobre demanda, quantidade exportada e compras de matérias-primas se encontravam em patamar inferior ao usual para os meses de março. “Essa redução do otimismo ocorreu mesmo após resultados mais positivos do setor em fevereiro, período em que houve alta do emprego industrial, recuo mais brando que o usual na produção e retração no nível de estoques de produtos finais”, destaca a CNI. Em fevereiro, a utilização da capacidade instalada manteve-se estável em 68%. O porcentual equivale à média dos meses de fevereiro da série histórica.
O economista-chefe da Fiesp ressalta o caso da economia dos EUA, que está aquecida e a inflação está caindo. “Ocorreu uma desaceleração lá, talvez não na magnitude que se esperava, dado que não teve o impacto imaginado no lado real da economia. No resultado final, o balanço é positivo, vê-se que a inflação está baixa e a economia ainda está aquecida nos Estados Unidos”, destaca Rocha.
Esse movimento que está acontecendo não só no Brasil e nos EUA, mas em âmbito global, mostra que essa relação entre nível de emprego e taxa de inflação não é uma relação direta. Claro que, a depender de uma série de fatores, em uma perspectiva mais simples, é possível até olhar dessa forma, mas em política econômica é necessário visualizar o conjunto como um todo, ter uma visão um pouco mais complexa da realidade. Obviamente, é preciso ter cautela e responsabilidade quanto à questão da inflação, ninguém está falando contra isso. Mas o próprio movimento das economias na pós-pandemia, sobretudo no último ano, já colocou em xeque a existência dessa relação direta entre nível de emprego e taxa de inflação, frisa o economista da Fiesp.
Segundo Ira Regmi, gerente de programa de análise macroeconômica do think tank nova-iorquino Roosevelt Institute, a desaceleração da inflação nos EUA não resultou de mudanças na demanda ou no mercado de trabalho, mas porque as cadeias de abastecimento estão gradualmente se recompondo e a escassez está diminuindo. “No entanto, o Fed continua a aumentar as taxas de juro e sinaliza um mercado de trabalho ‘desequilibrado’ como demasiado restritivo. À medida que a inflação global desacelera – principalmente em resposta a movimentos nos preços da energia, dos alimentos e dos bens básicos – e com os custos dos serviços não habitacionais não se acelerando, não há um argumento forte para conter a inflação através da redução dos salários e da colocação em risco de empregos”, dispara Regmi, no artigo As Inflation Slows, Don’t Credit the Fed.
Além disso, alguns preços, incluindo a energia, têm impacto maior na estabilidade geral de preços e, portanto, os aumentos das taxas de juro não serão capazes de fazer frente à inflação diante de grandes choques setoriais, como pandemias, perturbações ou alterações climáticas, como demonstrou a economista alemã Isabella Weber, professora no MIT, no artigo recente intitulado Inflation in Times of Overlapping Emergencies: Systemically Significant Prices from an Input-Output Perspective.