IEDI na Imprensa - Falhas no plano de vacinação deixam fabricantes 'no escuro', do algodão à seringa
O Globo
Falta de previsibilidade dificulta investimentos e contratações para atender a demanda, além da logística de distribuição dos imunizantes
Bruno Rosa e Glauce Cavalcanti
Entre a importação dos insumos essenciais para a produção de vacinas contra a Covid-19 e a aplicação do imunizante no braço de alguém há um longo caminho que atravessa diferentes setores econômicos, da agroindústria de algodão e álcool aos estabelecimentos que podem funcionar como pontos de vacinação, passando pela logística e pela própria fabricação dos imunizantes.
No entanto, indefinições sobre como, em que quantidade e em que velocidade serão distribuídas as doses dificultam investimentos, contratações e aumento da produção nas empresas da cadeia da imunização.
Com as máquinas do Instituto Butantan, em São Paulo, e da BioManguinhos/Fiocruz, no Rio, em compasso de espera, aguardando insumos importados da China para produzir, fornecedores e prestadores de serviço se preparam para a demanda no escuro.
Fabricantes de seringas, por exemplo, já ampliaram a produção em 25%, mas, no segmento específico para essa vacina, podem ter que triplicar. O setor diz ter capacidade de fazer isso, mas não sem licitações e encomendas com prazos razoáveis.
Entregas de refrigeradores para armazenar doses podem levar até nove meses. Fornecedores de material hospitalar também alertam que o governo não pode esperar que toda a demanda seja atendida de uma só vez sem previsão.
Há desafios até na distribuição por aviões e caminhões, mesmo com a estrutura do Plano Nacional de Imunização, e nos empreendimentos privados que podem ceder áreas para a vacinação, como shoppings e supermercados.
8 milhões de doses até agora
Até agora, o país conta com seis milhões de doses da chinesa Coronavac, produzidos pelo Butantan. Na sexta-feira, recebeu dois milhões de unidades da vacina desenvolvida pelo laboratório AstraZeneca em parceria com a Universidade de Oxford, no Reino Unido, a ser produzida na Fiocruz.
Isso ainda é muito pouco considerando que o país tem 210 milhões de habitantes e que a imunização se dá em duas doses.
Juliana Inhaz, coordenadora da graduação em Economia do Insper, alerta que as falhas do governo não só deixam vidas em risco. Aprofundam a crise econômica, “esticando o tempo que o país ficará no buraco”
Embora seja difícil dimensionar com precisão quanto em dinheiro o plano de vacinação movimenta, ela diz que é o melhor investimento para o país neste momento:
— Vacinar custa caro, mas frente a quê? As perdas trazidas pela pandemia custam muito mais e têm de entrar na conta do governo. Perdemos vidas, PIB, empresas, empregos e ainda teremos que lidar com sequelas na força de trabalho.
Incerteza prejudica a economia
Rafael Cagnin, economista do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (IEDI), acrescenta que o pior entrave é a incerteza:
— A pandemia apaga o horizonte das empresas, dificulta programar médio e longo prazos. O papel do governo é criar esse horizonte, sinalizar a luz no fim do túnel. Isso inexiste.
Para a microbiologista Natalia Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência (IQC), o Brasil precisa aumentar os investimentos em ciência para reduzir sua dependência externa na área de vacinas, uma tarefa de longo prazo que o país não tem priorizado.
"Faltou investimento para desenvolver uma vacina brasileira. Tivemos um erro de gestão. Como o governo nega a pandemia, falta planejamento", diz Natalia Pasternak.
Segundo Norberto Prestes, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Insumos Farmacêuticos (Abiquifi), atualmente mais de 90% dos insumos utilizados para produzir medicamentos no país são importados. Em 2020, com a pandemia e a alta do dólar, esses itens triplicaram de preço, segundo ele.
— No fim da década de 1980, produzíamos mais de 50% desses insumos. Com a abertura do mercado e a falta de políticas que garantissem condições de competir com fornecedores internacionais, foi ficando inviável produzir aqui — diz. — Perdemos capacidade de reagir com agilidade em emergências.
Incertezas com atrasos
Na Fiocruz, que selou parceria para produzir a vacina AstraZeneca/Oxford no Brasil, o cronograma inicial de produção, que prevê cem milhões de doses até junho, só sai do papel depois da chegada do insumo chinês.
Mesmo assim, Mauricio Zuma, diretor de BioManguinhos, a produtora de vacinas da Fiocruz, estima a geração de 300 novos empregos diretos com a produção do imunizante, controle de qualidade e logística.
A Fiocruz recebeu quase R$ 2 bilhões em recursos públicos e privados para a compra dos insumos e a reforma na fábrica de Manguinhos, na Zona Norte do Rio
— O primeiro lote (da matéria-prima) está pronto para ser embarcado, aguardando desembaraços burocráticos e a autorização de exportação pelas autoridades — diz Zuma, sem estimar previsão da chegada do material.
Ao menos os dois milhões de doses prontas encomendados da Índia chegaram sexta-feira. A Fiocruz lança nas próximas semanas edital para erguer um complexo industrial, na Zona Oeste do Rio, com investimento de R$ 3,4 bilhões. Mas ele só fica pronto em 2025.
"A produção e o processamento final de produtos biológicos, especialmente vacinas, são um grande gargalo. Este empreendimento trará autossuficiência", diz Mauricio Zuma, diretor de BioManguinhos.
Em São Paulo, o Instituto Butantan, que fez uma parceria com a chinesa Sinovac, também aguarda. Após doação de R$ 160 milhões em recursos, constrói fábrica com capacidade para produzir em São Paulo a matéria-prima que vem da China, mas a inauguração e a transferência de tecnologia estão previstas para outubro.
O governo federal encomendou 46 milhões de doses por R$ 2 bilhões. Procurado, o Butantan não detalhou seus planos.
Ministério da Saúde diz que não faltará material
Não é só a matéria-prima que preocupa. Paulo Henrique Fraccaro, presidente da Abimo, que reúne a indústria de equipamentos médicos, lembra que o setor de seringas e agulhas já ampliou sua produção anual de 1,2 bilhão para o teto da capacidade, de 1,5 bilhão.
Mas o incremento de 25% não é suficiente no segmento de seringas de 3ml, apropriadas para a vacina da Covid.
O país produz cerca de 150 milhões desse tipo por ano, que já estão direcionadas para as outras vacinas. Para atender a essa demanda emergencial, o setor estima a necessidade de triplicar a produção.
— A indústria tem capacidade, mas não faz estoque, não produz sem pedido ou licitação — pondera Fraccaro. — As fábricas já trabalham com hora extra, mas só vão ampliar turnos e fazer contratações se houver encomenda fechada.
Fraccaro destaca que o valor buscado pelo governo no edital da licitação frustrada do fim de 2020, de R$ 0,18 por seringa, é inviável. O setor trabalha para entregar no fim deste mês um lote de 30 milhões de seringas pedidos por requisição administrativa.
O Ministério da Saúde tem repetido que o Brasil tem a quantidade de agulhas e seringas suficiente para fazer a imunização e nega falhas de planejamento.
Cresce demanda por refrigeradores
Na área de refrigeradores para transporte e armazenamento de doses na temperatura adequada, Lucia Shih, gerente de vendas da importadora Lobov, conta que aumentaram em 50% as encomendas para entrega este ano em comparação com 2020.
"Há uma demanda global. Planejamento é essencial. Por isso, estamos armazenando produtos", diz Lucia Shih, gerente da Lobov
Ela ressalta ainda que ouviu de alguns clientes que há registro de até 9 meses para a entrega entre alguns fabricantes. A Indrel, fabricante de equipamentos de refrigeração no Paraná, investiu R$ 3 milhões em 2020 para ampliar capacidade. A empresa criou um terceiro turno e pode investir outros R$ 3 milhões este ano. Alguns equipamentos podem custar até R$ 120 mil.
— Temos espaço para ampliar em mais 40% a produção, mas vai depender de como avançará o calendário da vacinação — diz o presidente da empresa, João Rapcham.
Ele continua:
— No ano passado, quando havia uma sinalização de compra da vacina da Pfizer, tivemos aumento enorme de procura por ultracongeladores, que permitem temperaturas negativas de -70ºC. E agora não há mais porque não se sabe quais vacinas serão utilizadas.
Fernando Pimentel, presidente da Associação Brasileira da Indústria Têxtil (Abit), diz que a integração entre produção agrícola e fornecedores de algodão hidrófilo não deixa risco de desabastecimento do item usado nas salas de vacinação, mas cobra previsibilidade.
"Não existe restrição de oferta, mas precisa haver planejamento para escalonar pedidos e entregas", diz Fernando Pimentel, da Abit.
Outras fábricas de vacinas à vista
Além dos aportes de Fiocruz e Butantan, há uma expectativa adicional de investimentos entre R$ 600 milhões e R$ 900 milhões de laboratórios privados para finalizar a produção de vacinas aqui.
A União Química quer produzir o imunizante Sputnik V em sua fábrica de Brasília. Um lote piloto já foi produzido, mas a aplicação da vacina russa no país ainda não foi autorizada pela Anvisa.
A também brasileira Farmacore desenvolve uma vacina com a americana PDS. A diretora da empresa, Helena Faccioli, estima pedir em maio autorização à Anvisa para os testes clínicos, que devem estar concluídos em 2022.
Para ela, o país ainda depende do exterior por falta de investimentos.
"Falta incentivo do governo para desenvolver IFA e vacina aqui. Temos capacidade para fazer isso. Nós vamos desenvolver o IFA. Já investimos R$ 10 milhões no projeto, sendo 30% vindos do governo para a fase de testes pré-clínicos", diz Helena Faccioli, da Farmacore.
Quinze grupos científicos no Brasil tentam desenvolver uma vacina contra a Covid-19, ainda sem sucesso, com recursos que somam cerca de R$ 15 milhões. Os EUA, por exemplo, aplicaram US$ 1 bilhão só no projeto do imunizante do laboratório Moderna.
— Não há investimento na ciência nem cultura de promover parcerias público-privadas. Sem isso, vamos ficar dependentes de acordos bilaterais e de curas milagrosas — diz a microbiologista Natalia Pasternak.
Norberto Prestes, da Abiquifi, diz que a indústria farmacêutica tem buscado mostrar ao governo a importância de o Brasil investir em tecnologia e chegar, em dez anos, a 30% de produção nacional de insumos farmacêutivos:
— Isso movimentaria a academia, a indústria, aprimoraria insumos, resolveria problemas endêmicos, impulsionaria a economia com exportações e atraindo investimento.
Imunização efetiva só em 2022, diz especialista
Segundo a epidemiologista Ethel Maciel, professora da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), os investimentos em fábricas de vacinas estão chegando muito tarde no Brasil.
O país ainda vai demorar para deixar de ser dependente do exterior para obter o principal insumo da vacina da Covid-19, o que dificulta imunizar uma parcela considerável da população antes de 2022, na visão dela. A previsão de transferência de tecnologia para Butantan e Fiocruz é só para o segundo semestre.
"Se não levarmos as indústrias para as universidades, vamos continuar sendo só o local de testes ou de embalagem das vacinas", diz a epidemiologista Ethel Maciel.
A médica destaca como outro erro do país provocar mal-estar diplomático com a China, que, junto com a Índia, responde responde por 70% dos insumos dessa área consumidos no Brasil.
- Essa pandemia tem que ensinar o país a investir na indústria de imunizantes porque temos muitas doenças recorrentes.
O Brasil investe cerca de 1,3% do PIB em pesquisas, bem menos que as taxas de EUA (2,7%), Alemanha (2,9%) e Coreia do Sul (4,3%).
Cagnin, do IEDI, chama atenção para as consequências da desindustrialização acelerada do país e do reduzido aporte em ciência e tecnologia:
— O Ministério de Ciência e Tecnologia teve o maior contingenciamento de recursos no último ano. Mas é ele que pavimenta o caminho do Brasil para o futuro. Estamos matando o futuro — diz ele. — E um ambiente adverso ao negócio industrial faz o país ver sua indústria encolher e ainda freia sua chance de entrar nas novas indústrias.