IEDI na Imprensa - Volume de doações para pesquisa é inédito no país
Valor Econômico
Crise reforça a importância do papel da ciência e de sua valorização
Celia Rosemblum
O movimento inédito de doações para pesquisa relacionadas ao novo coronavírus começa a delinear uma nova dinâmica das relações entre a sociedade e a ciência. Batizado como “Unidos contra a covid-19”, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) lançou em 2 de abril um canal para empresas, organizações e indivíduos interessados em apoiar as iniciativas desenvolvidas pela instituição para o enfrentamento da crise. Na sexta-feira, o portal computava R$ 235,7 milhões angariados.
O ViralCure.org.br/HC, portal para captação de recursos criado pelo Hospital das Clínicas (HC) em parceria com o governo do Estado de São Paulo e Secretaria de Estado da Saúde, que tem como uma de suas missões o financiamento em pesquisas, informava, também na sexta-feira, que R$ 29,5 milhões dos R$ 57 milhões que constituem a meta já haviam sido arrecadados com a ajuda de 7.055 doadores.
São exemplos de um movimento que ganhou força na crise sanitária: empresas e pessoas físicas começaram a buscar institutos e organizações de pesquisa para saber como ajudar no combate ao novo coronavírus; universidades, laboratórios, fundações e pesquisadores reuniram seus projetos e foram a campo captar recursos para acelerar a busca de soluções.
“A importância da ciência num cenário como este é muito grande. Ela é uma orientadora das nossas ações num momento em que a gente precisa estabelecer prioridades, porque você não consegue fazer tudo ao mesmo tempo”, afirma Paulo Chapchap, diretor geral do Hospital Sírio Libanês que está à frente do Todos pela Saúde, iniciativa de combate à covid-19 lançada a partir de uma doação de R$ 1 bilhão do Itaú Unibanco.
“A sociedade está fazendo uma conta de que a situação seria melhor agora se houvesse um investimento anterior. É a hora de discutir mais o assunto, engajar mais”, diz Esper Kallás, médico infectologista, pesquisador e professor titular do departamento de moléstias infecciosas e parasitárias da Faculdade de Medicina da USP. Ele identifica “um aporte pela primeira vez mais significativo da iniciativa privada” no período de pandemia.
O movimento de doadores mostra a confiança da sociedade na capacidade da ciência nacional de auxiliar nesse enfrentamento, na visão de Marco Krieger, vice-presidente de produção e inovação em saúde da Fiocruz. “A ciência não vai ser a única a resolver os problemas mas ela pode dar à sociedade as ferramentas para enfrentar”, afirma. E isso inclui também “entender um pouco os critérios e as dificuldades do momento científico, o que foi bem evidenciado em vários momentos da pandemia.”
Procurada no início da pandemia por instituições e empresas que queriam fazer doações, a Fiocruz criou um escritório de captações responsável por fazer negociações, apresentar os projetos e realizar prestações de conta para a sociedade e para órgãos de controle, relata Krieger.
Jamais tinha visto, em anos trabalhando, sensibilidade tão grande em relação a isso"
Do Todos pela Saúde, a fundação recebeu R$ 150 milhões para operação de duas centrais de testagem, uma no Rio de Janeiro e outra em Fortaleza. Segundo Chapchap, a capacidade analítica no Rio será de 15 mil testes por dia e em Fortaleza, de 10 mil. “Não é nem o maior projeto”, diz. Para os profissionais de saúde, os mais atingidos pela doença justamente por estarem perto dela, foram comprados mais de 90 milhões de itens de proteção individual para distribuição em todo o país. A organização do sistema de respostas, com apoio a mais de 150 hospitais, também demandou um volume considerável de recursos.
O direcionamento de recursos do Todos pela Saúde tem como base os quatro pilares do movimento: informar, proteger, cuidar e retomar. “Não podemos salvar o mundo, mas estes são os quatro pilares que a gente acha que podem diminuir a mortalidade e o sofrimento da sociedade como um todo”, diz Chapchap.
Um grupo de especialistas de renome faz reuniões diárias para tomar as decisões. “A gente desenvolve alguns projetos e aprova alguns pedidos de fomento para projetos que estejam dentro desses pilares”, conta. São, segundo Chapchap, dezenas de projetos selecionados de acordo com o maior impacto no salvamento de vidas. “Nessa fase aguda é muito importante salvar vidas porque as vidas se perdem em poucos dias depois do agravamento da doença.”
Embora não estejam no topo da lista emergencial, as doações da iniciativa privada “geram um momento ímpar de aceleração do processo de criação e financiamento de pesquisas”, diz Antonio José Rodrigues Pereira, superintendente do Hospital das Clínicas da FMUSP. “Essa situação é sem precedentes para o HCFMUSP e para o Brasil e o HC pretende mostrar que esse tipo de doação é, na verdade, um investimento.”
No HC, o processo trouxe novidades. Como os recursos variam de pesquisa para pesquisa e entram por meio da plataforma, são usados de acordo com as necessidades das equipes. “Isso muda completamente a lógica de incentivo à pesquisa, com muito menos burocracia. É um dinheiro que passa a estar disponível, trazido por empresas e por pessoas comuns, para investimento em ciência”, afirma.
Uma lógica parecida foi usada em parte das ações da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) relacionadas ao enfrentamento da pandemia. A entidade consolidou uma carteira para apresentar aos potenciais investidores. “É muito difícil um comitê privado, que não está ‘full time’ avaliando projeto, tomar a decisão de qual projeto financiar se apresentar uma lista de 50”, diz Carlos Américo Pacheco, diretor-presidente do Conselho Técnico-Administrativo. A entidade consolidou os projetos de maneira a formar uma rede de laboratórios com certa coerência entre si, explica.
Nas conversas que teve com diferentes pessoas e lideranças do mundo privado, Pacheco sentiu grande receptividade. A carteira de projetos foi apresentada, entre outras, a entidades como Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq), Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib), Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (IEDI) e Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee). “Jamais tinha visto, em anos trabalhando, uma sensibilidade tão grande em relação a isso.”
Os canais estão abertos para negociação com a iniciativa privada, não só para a questão da covid, podem ir além"
— Esper Kallás
Entre as ações para combater a covid-19, a Fiocruz selecionou, a partir de dois editais, 130 projetos terão apoio, num valor próximo a R$ 40 milhões. “Desse valor mais de 10% vão ser colocados pela inciativa privada. Isso é inédito. Ainda que a maior parte dos recursos venham do Ministério da Saúde ou da própria Fiocruz que direcionou de outras áreas para enfrentar pandemia”, relata Krieger. “Isso mostra uma mudança de mentalidade numa tradição que a gente não tinha tão forte aqui no Brasil como existe em outros locais.”
A busca por recursos é uma tarefa às vezes ingrata. A UFRJ mapeou o que seus laboratórios e grupos de pesquisa estavam fazendo em relação ao combate da covid-19 e reuniu em um catálogo com 68 pesquisas cadastradas. Entre os objetivos, estava a sistematização do material para angariar apoio financeiro. “Em um cenário em que o orçamento para a pesquisa no Brasil tem sido cada vez mais escasso, as doações advindas de pessoas físicas e/ou jurídicas tornam-se ainda mais fundamentais, sobretudo, em um momento que requer emergência na execução de pesquisas direcionadas para lidar com a pandemia e seus efeitos”, afirma Ariane Cristine Roder Figueira, superintendente acadêmica de pesquisa, da pró-reitoria de pós-graduação e pesquisa da UFRJ. Até agora, porém, não foram oficializadas doações.
As contribuições de pessoas e empresas a entidades que buscam soluções para a covid-19 devem deixar heranças. “No mínimo criou uma interlocução melhor. Os canais estão abertos para negociação com a iniciativa privada, não só para a questão da covid, podem ir além”, diz Kallás, do HC.
Entre as lições, estão as redes que se organizaram de uma forma especial para atender as demandas. “Várias universidades e hospitais somaram esforços para trabalhar, o setor público e o setor privado também”, diz Kallás.
“Estudos multicêntricos de pesquisa já existiam, mas agora você vê instituições que procuram umas às outras para poder fazer projetos conjuntos de pesquisa, para darem respostas mais rápidas porque a velocidade de resposta depende do número de pacientes nos estudos”, relata Chapchap.
São iniciativas como a criação da primeira base de dados anonimizados abertos do país com informações demográficas de 75 mil pacientes, anunciada pela Fapesp em junho. O repositório - criado em colaboração com a Universidade de São Paulo (USP), o Grupo Fleury e os hospitais Sírio-Libanês e Albert Einstein - também vai abrigar 1,6 milhão de exames clínicos e laboratoriais e 6.500 dados de desfecho de pacientes para subsidiar pesquisas sobre covid-19.
Além das respostas no período da pandemia, Krieger, da Fiocruz, ressalta a importância do “fortalecimento das atividades da pesquisa e num legado que essas ações têm que deixar para a nossa instituição, para o Sistema Único de Saúde, para a ciência brasileira”.
“A gente precisa criar organismos mais estáveis que independam do governo de ocasião - municipal, estadual e federal. Estruturas como essa da Fiocruz, como do Instituto Butantã que possam ser apoiadas independentemente de qual é poder político que está no momento na liderança”, afirma Chapchap.
Uma visão estratégica do reforço da produção nacional deve ser estabelecida, assim como a visão sobre a importância da utilização do conhecimento científico no enfrentamento de situações graves como é o caso da pandemia, diz Krieger. “Acho que vamos ter isso muito claramente. Não vi ninguém do movimento antivacina comentando alguma coisa contra vacinas que podem chegar e salvar a humanidade dessa situação. Então, estou bastante otimista.”