Carta IEDI
Passado, Presente e Futuro da Indústria Eletroeletrônica no Brasil
A Carta IEDI de hoje reproduz entrevista concedida por Benjamin Sicsú, vice-presidente de Novos Negócios da Samsung América Latina, que teve longa passagem pelo setor público brasileiro. Sicsú é grande conhecedor do setor eletrônico e fala sobre as oportunidades futuras desse segmento no Brasil.
Indagado sobre o segredo do sucesso chinês em desenvolver o setor, sustentou que “os chineses iniciaram o desenvolvimento desse tipo de manufatura apoiados em mão-de-obra muito barata, mas também exigiram, em contrapartida, desenvolvimento tecnológico. Assim, toda multinacional que foi produzir lá era obrigada a assegurar desenvolvimento tecnológico no país, por associação a capitais nacionais ou por controle do Estado. A China também tinha um bom nível educacional que, junto com a obrigatoriedade de compartilhamento de tecnologia, permitiu que desenvolvesse sua própria tecnologia.”
Sicsú assim explica o êxito da política de uma economia como a da Costa Rica em instalar uma unidade de componentes eletrônicos. “O país usou os recursos obtidos pelo Estado, com o desenvolvimento de atividades de encapsulamento de uma empresa, para criar uma política pública de adensamento da cadeia. Isso foi algo interessante feito lá, mas não reproduzido aqui. Qual é o problema da nossa Lei de Informática? O Estado Brasileiro não se aparelhou para poder dialogar com a indústria. Toda vez que se faz política microeconômica, o Estado tem que operar essas regras. Aqui no Brasil é reduzido o número de gestores públicos para executar a política. Os resultados são limitados.”
Para o Brasil, sustenta ainda, “sobrou a integração e a montagem final. Acontece o mesmo em quase todos os outros países. Alguns países, obviamente, se apropriam de partes da cadeia de valor pela execução do desenvolvimento, como os EUA e a Europa. Sobram para o Brasil, também, os serviços associados, como assistência técnica. Por que o Brasil não participa das outras etapas de produção? Porque o desenvolvimento é fruto de um elevado nível educacional, o que ainda não temos. E porque o mundo, nessa lógica, reservou para 4 ou 5 países a manufatura dos componentes.”
Sobre o PPB (processo produtivo básico), sua avaliação é que não teve efeito, mas tivemos sucesso em implementar a pesquisa e desenvolvimento local: “atualmente, a participação de componentes produzidos nacionalmente mal passa de 4% a 5% no valor de um produto. São cabos, carregadores, em síntese, componentes periféricos. Entretanto, o investimento em P&D já deu certo. O volume de recursos gastos em pesquisa e desenvolvimento chega a algo como 1,5 bilhão de reais por ano, sendo significativo. Isso mobiliza de 20 a 30 mil técnicos de nível superior. Esses investimentos são importantes porque, ainda que a propriedade da tecnologia desenvolvida seja da empresa, essas pessoas que trabalharam para desenvolvê-la adquirem competências que passam a pertencer à sociedade brasileira.”
Indagado se a regra de PPB deveria a ser abolida disse que sim e explicou: “o que precisamos é fortalecer e ampliar o P&D. Em relação ao PPB, a lógica de produção é mundial. Em relação aos componentes, não dá para ser bom num ou noutro. Tem que ser bom em todos. Estamos fora dessa lógica produtiva mundial.”
Muita poderia ser feito para o Brasil melhorar sua posição no setor: “Primeiro, errar menos. Como não temos muitos recursos, não temos o direito de errar tanto. Em segundo lugar, precisamos criar um grupo de especialistas dentro do Estado, nos níveis estadual e federal, para gerir esse setor. Um grupo que estude o setor rotineiramente, que entenda qual é a direção de mudança no mundo. Assim, conseguiremos identificar quais serão as frentes em que o Brasil poderá participar lá no futuro. E, por fim, saber que as cadeias produtivas são cada vez mais partilhadas, isto é, que um número maior de empresas se apropria do valor gerado. Isso abre a possibilidade de que possamos nos acertar dentro dessas cadeias e construamos uma participação mundial.”
E complementa afirmando que “só com o tamanho do mercado brasileiro, não iremos avançar. Nosso mercado é pequeno frente às escalas de produção exigidas. Devemos acertar sabendo que a resolução de muitos problemas sociais passa pela especialização da tecnologia, ou seja, passa pela produção de chips especializados voltados para a área de educação, saúde, mobilidade urbana, etc.”
Exemplifica observado que “acredito que o futuro está na especialização. Você não comprará simplesmente um celular; vai comprar um celular adequado para suas necessidades... Um celular para esportista, um celular para professor, um celular para profissional da saúde. É uma segmentação. Haverá, então, um fracionamento da cadeia de valor agregado da indústria de chips que abrirá oportunidades. Todo o design do chip e seu desenvolvimento poderá ser feito no Brasil fortalecendo o setor.”
“Além disso, é preciso investir em educação e formação de mão de obra. O último estudo que vi para fazer uma fábrica de US$ 3 bilhões de investimento em memória, numa empresa de microeletrônica, exigia uns 200 engenheiros e, no Brasil, não chegam a 50 engenheiros especializados em manufatura microeletrônica. Não dá nem para operar uma fábrica!”
IEDI: Sabemos que a China tornou-se a “fábrica do mundo”. No caso do setor eletroeletrônico, o peso atual da China nas importações brasileiras é de quase 40%, enquanto que ainda nos anos 1980 nossa indústria de eletroeletrônicos era muito mais desenvolvida do que a chinesa. Como compreender essa evolução?
Benjamin Sicsú: Um produto final é composto de várias partes: desenvolvimento, fabricação de componentes, montagem e serviços embutidos. Hoje, temos cerca de 20 países que produzem chips no mundo. Em displays de LCD, só há 3 países: China, Coreia e Japão – o último está deixando esse mercado. De 1980 para cá, aumentou a concentração em centros de produção mundiais, não só nos países asiáticos. O conhecimento ficou mais concentrado nos EUA – especialmente no Vale do Silício – mas também ocorreu em outros países. Entretanto, apenas alguns países foram capazes de garantir os custos de manufatura exigidos. Isso porque o mercado passou a demandar portabilidade dos produtos, miniaturização dos componentes e uma integração cada vez maior entre eles. Quer dizer, um componente passou a realizar mais funções do que antigamente. Por exemplo, uma placa de TV ou de celular dos anos 1980 possuía um volume de componente 30 vezes maior do que uma placa atual. Essa lógica levou a um aumento violento das escalas necessárias e, por isso, à concentração da produção de componentes em poucos países. Mesmo os EUA e a Europa, hoje, não fabricam um número significativo de componentes.
IEDI: A terceirização da manufatura é, então, uma marca do setor?
Benjamin Sicsú: Os fabricantes americanos e europeus adotam manufaturas terceirizadas. Os coreanos e chineses, não. Eles terceirizam muito pouco a manufatura porque conseguem ganhar dinheiro produzindo.
IEDI: O que a China fez, então, para conseguir a posição que possui hoje no setor?
Benjamin Sicsú: Os chineses iniciaram o desenvolvimento desse tipo de manufatura apoiados em mão-de-obra muito barata, mas também exigiram, em contrapartida, desenvolvimento tecnológico. Assim, toda multinacional que foi produzir lá era obrigada a assegurar desenvolvimento tecnológico no país, por associação a capitais nacionais ou por controle do Estado. A China também tinha um bom nível educacional que, junto com a obrigatoriedade de compartilhamento de tecnologia, permitiu que desenvolvesse sua própria tecnologia.
Vejamos o que acontece no caso de algumas empresas chinesas. Muitas delas apostaram no abastecimento do mercado interno e, depois, do mundo. Uma delas comprou da IBM a produção dos desktops. Hoje ela se tornou líder mundial nessa produção. Depois, procurou se tornar líder do mercado de notebooks. Ainda não é, mas começou a disputar a posição de líder. Agora, obviamente, se ela quiser ser grande, é preciso estar no mercado de portáteis. Então, ela teve de entrar no mercado de smartphones e de tablets. Essa empresa estava no mercado local e, em seguida, criou um modelo de globalização baseado em um produto de alta qualidade que não foi desenvolvido por ela, mas que aprendeu a fazê-lo. E também aprendeu a fazer operações comerciais em vários países. Hoje continua comprando produtos de terceiros e já desenvolve os seus próprios. A questão é, se daqui a alguns anos, manterá desenvolvimento tecnológico próprio, que consiga manter a liderança no mercado. O que esse grupo fez com desktops e notebooks foi mantê-los atualizados. É preciso, entretanto, saber se essa lógica vai funcionar no mercado de smartphones e tablets.
Por que os preços de TV e de telefone caem? Se você pegar o mercado de smartphones, não há líderes constantes de mercado. A liderança mudou 4 ou 5 vezes nos últimos 15 anos. São empresas extremamente competitivas, dependentes de tecnologia e de inovação. Então, essa concorrência fenomenal e essa necessidade de desenvolvimento tecnológico baixam os preços e definem o futuro.
IEDI: Como se explica a operação industrial na Costa Rica?
Benjamin Sicsú: A Costa Rica só faz o chamado encapsulamento. O país usou os recursos obtidos pelo Estado, com o desenvolvimento de atividades de encapsulamento de uma empresa, para criar uma política pública de adensamento da cadeia. Isso foi algo interessante feito lá, mas não reproduzido aqui. Qual é o problema da nossa Lei de Informática? O Estado Brasileiro não se aparelhou para poder dialogar com a indústria. Toda vez que se faz política microeconômica, o Estado tem que operar essas regras. Aqui no Brasil é reduzido o número de gestores públicos para executar a política. Os resultados são limitados.
IEDI: O que sobrou, então, para o Brasil?
Benjamin Sicsú: Sobrou a integração e a montagem final. Acontece o mesmo em quase todos os outros países. Alguns países, obviamente, se apropriam de partes da cadeia de valor pela execução do desenvolvimento, como os EUA e a Europa. Sobram para o Brasil, também, os serviços associados, como assistência técnica. Por que o Brasil não participa das outras etapas de produção? Porque o desenvolvimento é fruto de um elevado nível educacional, o que ainda não temos. E porque o mundo, nessa lógica, reservou para 4 ou 5 países a manufatura dos componentes.
As empresas que produzem hoje no Brasil são multinacionais. Quase não existem mais nacionais no setor. Foi a necessidade de pesados investimentos em inovação que levou a esse quadro. Essas multinacionais fazem aqui a manufatura, baseadas em regras que o país criou para que produzam aqui. Basicamente, essas regras são isenção de impostos e contrapartida com gastos em P&D e PPB (processo produtivo básico). Bem, na verdade, a exigência de PPB ainda não teve muito efeito. Atualmente, a participação de componentes produzidos nacionalmente mal passa de 4% a 5% no valor de um produto. São cabos, carregadores, em síntese, componentes periféricos.
Entretanto, o investimento em P&D já deu certo. O volume de recursos gastos em pesquisa e desenvolvimento chega a algo como 1,5 bilhão de reais por ano, sendo significativo. Isso mobiliza de 20 a 30 mil técnicos de nível superior. Esses investimentos são importantes porque, ainda que a propriedade da tecnologia desenvolvida seja da empresa, essas pessoas que trabalharam para desenvolvê-la adquirem competências que passam a pertencer à sociedade brasileira.
IEDI: Retrocedamos um pouco na evolução do setor no Brasil. Qual era a importância da reserva de mercado?
Benjamin Sicsú: Estou nesse setor de TICs desde 1977. Participei, inclusive, da criação da reserva de mercado. Ajudei a desenhar várias políticas. Naquela época da reserva de mercado, tudo tinha que ser feito aqui. Quem produzia eram as multinacionais, associadas a grupos nacionais, mas a um custo altíssimo e não trazendo as novidades para o País. Assim, quando o mercado foi aberto, fez um grande bem porque os resultados da reserva de mercado estavam mortos. A pergunta é: poderia haver uma manufatura forte aqui? Acho que não. Porque essa manufatura forte não se constituiu em quase nenhum lugar do mundo. Só se constituiu na China e na Coreia e não há muitos mais exemplos... Mas existem vários exemplos de países que deram incrementos tecnológicos grandes, com efeito positivo sobre a renda de seus habitantes, mas não são manufatureiros. Agregam valor na área de desenvolvimento, inovação, design.
Nos anos 1970 fui convidado a ajudar um grupo brasileiro do ramo imobiliário a diversificar suas operações. Sugeri investir em informática. Fizemos um projeto para produzir uma placa em joint-venture com um grupo inglês, que fazia equipamentos militares. Quando veio a reserva de mercado em 1984, nos deparamos com o fato de que éramos a única empresa brasileira que era uma joint-venture. No entanto, a regra de reserva de mercado não permitia isso. As empresas favorecidas eram aquelas com capital multinacional, mas com filial nacional. Desenvolvimento havia pouco. Naquela época, é verdade que se fazia semicondutores no País, porém sem agregação local. Era só a manufatura. Dependíamos de empresas que vinham produzir aqui apenas para se beneficiar de uma reserva de mercado. As leis criadas posteriormente, a partir de 1991, acabaram com a reserva e beneficiaram o consumidor, que passou a ter acesso a produtos atualizados.
IEDI: São atualizados, mas também são mais caros...
Benjamin Sicsú: Sim, são mais caros. Mais aí é que o País precisa calibrar a regra. Por que é mais caro? Porque existe um diferencial tributário. Você cobra impostos do importado que não incidem sobre o produto feito aqui. Em contrapartida, uma parte da renda da empresa que produz aqui precisa ir para o P&D; senão, não obtém a isenção. Essa é a vantagem do País. O cidadão paga um pouco mais e o País se desenvolve tecnologicamente. Porém, para termos mais efetividade, seriam necessários mais gestores públicos. O governo tem dificuldade em analisar esses gastos em P&D a tempo, muitas vezes leva 10 anos... Além disso, há o PPB que, como disse, ficou de lado. É uma questão que desperta mais emoções do que deveria.
Então, como toda política microeconômica, precisa, a meu ver, haver uma avaliação permanente; não dá para deixar solta. É diferente da política macroeconômica. Porque na macro as regras são gerais mesmo, na política micro é preciso ter gestores para controlá-la. Repito: esse é o problema do Brasil. Você faz política industrial micro, mas não tem pessoal para operacionalizá-la. O objetivo da política se dilui.
IEDI: Segundo a experiência do setor eletroeletrônico, a regra de PPB deveria, então, a ser abolida?
Benjamin Sicsú: No caso do setor, sobretudo de TICs, o que precisamos é fortalecer e ampliar o P&D. Em relação ao PPB, a lógica de produção é mundial. Em relação aos componentes, não dá para ser bom num ou noutro. Tem que ser bom em todos. Estamos fora dessa lógica produtiva mundial.
IEDI: Não daria para encontrar um nicho de mercado ou se inserir na cadeia global de produção se especializando apenas em alguns componentes?
Benjamin Sicsú: Não, não dá. São investimentos que passam de 4 ou 5 bilhões de dólares. A necessidade de escala tira o Brasil do jogo. Temos uma participação no mercado mundial de 3% a 5% em qualquer componente; então, uma fábrica implantada aqui teria que exportar 90% de sua produção para ter competitividade. Ademais, existe uma diversidade de componentes. Cada marca usa componentes diferentes. A escala que o Brasil comporta é ainda menor. Você vai obrigar todas as empresas a usar a mesma tela de televisão aqui? É inviável.
A agregação de valor que nós temos que ter nos TICs passa pela melhoria da educação, pela criação de clusters de desenvolvimento tecnológico, de design (de chips, por exemplo). Passa também pela agregação de serviços e softwares nos produtos. Software embarcado e o desenvolvimento de aplicativos para equipamento móveis e televisores.
IEDI: Quais oportunidades poderiam ser abertas ao Brasil pela fronteira tecnológica do setor, como a internet das coisas, smarts grids, etc?
Benjamin Sicsú: Hoje, somos 6 bilhões de pessoas e 4 bilhões de aparelhos conectados à internet. Até 2020, mais ou menos, seremos 7 bilhões de habitantes e 50 bilhões de aparelhos conectados. Hoje o único aparelho conectado de um carro é o GPS; pense que o carro poderia estar conectado a uma central de trânsito, aos semáforos, aos outros carros. Isso é a “internet das coisas” (IoT – internet of things). Para isso são necessários sensores. Esse é um foco. O Brasil pode ter sensores? Pode. Capacidade de processamento de dados e inúmeros softwares e aplicativos também são fundamentais. Essas são oportunidades. Temos que aproveitar essas janelas de oportunidades de negócio.
Outra coisa importante é a indústria de chips. Vivíamos, na época no notebook e do desktop, sob a ditadura de 3 fabricantes de processadores. Ao se comprar um notebook, pagava-se 80 a 100 dólares por um processador que era capaz de fazer tudo. Hoje, o que está acontecendo? A especialização da tecnologia vem permitindo a produção de chips por 5 a 6 dólares com menor capacidade, mas que têm um desempenho satisfatório para seu uso específico. Um chip que vai fazer o controle da rede de energia elétrica não precisa ter habilidade para sofisticados estudos óticos, por exemplo. Assim, esse chip pode custar muito menos. As marcas líderes de chips de notebooks e desktops não estão na liderança de chips para celulares. Os líderes de softwares operacionais não são os mesmos de desktops e notebooks. Estão ainda tentando entrar nesse mercado. Os chips dominantes no mercado de celular têm tecnologia inglesa.
O Brasil pode fazer, por exemplo, um chip para o sistema educacional muito mais barato do que comprar um chip padrão de notebook. Por, digamos, 10 dólares, pode ser feito um chip de alta qualidade. Agora, é claro, esse chip não permitirá projetar óculos, não poderá fazer cálculos de lançamento de foguetes, etc. Mas ainda assim é uma grande oportunidade. Vamos ver se o Brasil vai se jogar nisso...
Acredito que o futuro está na especialização. Você não comprará simplesmente um celular; vai comprar um celular adequado para suas necessidades... Um celular para esportista, um celular para professor, um celular para profissional da saúde. É uma segmentação. Esses aparelhos especializados têm custos menores e limitações maiores. Atualmente você já não consegue usar todas as funções de um celular... O que adianta ter um software ou um hardware potente se você só usa 10% deles?
Haverá, então, um fracionamento da cadeia de valor agregado da indústria de chips que abrirá oportunidades. Todo o design do chip e seu desenvolvimento poderá ser feito no Brasil fortalecendo o setor.
IEDI: A Lei de informática teria um papel a desempenhar no aproveitamento dessas oportunidades?
Benjamin Sicsú: As pessoas do Governo que operam a política são muito poucas. Na minha avaliação, falta gente. É o que disse: na micropolítica, é preciso haver um conjunto maior de gestores. Se continuarmos com ministérios atrofiados, com poucos técnicos, não conseguiremos acompanhar a evolução do setor. No setor de eletroeletrônicos, que é muito inovador, isso é particularmente importante. Conclusão: a lei de informática é importante, mas tem que ter mais gestores, cada vez mais dedicados e qualificados.
A falta de pessoal que estuda microeconomia é patente. Na faculdade, todo aluno quer se especializar em macroeconomia. Veja no mercado: economistas de banco são majoritariamente macroeconomistas, poucos entendem de micro. No governo, é a mesma coisa, o predomínio do macro sobre o micro.
Outro problema é que os estados participam pouco na formulação das políticas do setor. Com a guerra tributária para atração de investimentos nos estados, a questão nacional não é observada. Absurdos no passado também foram realizados. Por exemplo, o País definiu que certos produtos, como TVs e motos, só seriam produzidos em Manaus. Para isso, aumentou o IPI desses produtos fora da Zona Franca de Manaus (ZFM). Porém, crises econômicas pontuais dos setores fizeram com que os governos estaduais tivessem que dar isenção de ICMS para manter a produção. Esse é o tributo que tem que ser arrecadado para suprir questões essenciais, como educação, saúde e segurança. Então, reduzir o ICMS permanentemente de produtos exclusivos de produção na ZFM afeta muito a população.
IEDI: A guerra fiscal tem impacto nas decisões de investimento do setor? Prejudica os investimentos?
Benjamin Sicsú: As empresas vão aonde as condições são mais vantajosas... Atualmente, no setor eletro-eletrônico o conflito com a Zona Franca de Manaus acabou. A guerra fiscal passa agora por Santa Catarina, Espírito Santo, Tocantins, etc. Manaus contava, por exemplo, com incentivos estaduais para a produção de painéis de LCD que necessitaram ser revistos. O estado fez uma negociação com a Eletros e reduziu os incentivos e conseguiu aumentar sua arrecadação significativamente.
Empresas tem produção importante em Manaus e fora de lá. Elas não participam da guerra fiscal, vão arbitrando onde é mais vantajoso. É preciso fazer contas... O setor mais importante das empresas é o setor tributário, claro... Num sistema regulado, você ganha de acordo com as negociações que você faz com o governo.
IEDI: Como avalia as margens de preferência para as compras governamentais criadas recentemente?
Benjamin Sicsú: Usar margens de preferência para favorecer o produto nacional é uma boa política. Os critérios são dois: a produção no Brasil e o desenvolvimento do produto no País. A primeira vez que essas regras foram adotadas no setor de TICs não foi um sucesso, foi nas compras das empresas de telecomunicações, para equipamentos destinados a 3G. Não teve um bom resultado, mas, de qualquer forma, o conceito é bom.
Suponhamos que a margem é de 25%, mas nesse caso é preciso que parte do produto seja produzido aqui (isto é, PPB) e que parte seja desenvolvido aqui. Hoje se fala muito de 15% para PPB e 10% para desenvolvimento interno. Se você entrar na licitação só cumprindo o PPB, você consegue uma margem de apenas 15%. Saber o que é produzido nacionalmente é fácil. Mas as regras ainda são muito frágeis no que diz respeito ao desenvolvimento. Isso porque hoje cada vez mais o desenvolvimento está no software embarcado e a Lei de Informática é uma lei para hardware. Você não consegue medir o que foi embarcado e, por essa razão, a política não está melhor desenhada. Quando a política vai funcionar bem, então? Quando for possível avaliar o conteúdo nacional desse software embarcado.
Quem opera então a política? Ou seja, quem está medindo quanto de determinado software está sendo feito localmente? Os ministérios, atualmente, com poucos funcionários no setor. Os técnicos fazem mil coisas ao mesmo tempo. Por isso, insisto: é preciso que existam mais gestores das regras.
Poderia resumir dizendo que as regras de política são bem formuladas, até porque se faz um levantamento de experiências internacionais e se define uma política com base em resultados mundiais. Mas, depois, falta gente para acompanhar a aplicação dessas regras. Além disso, para agravar, o Estado historicamente tem dificuldades para trabalhar com a iniciativa privada.
IEDI: Olhando para o futuro, então. O que pode ser feito para o Brasil melhorar sua posição no setor de TICs?
Benjamin Sicsú: Primeiro, errar menos. Como não temos muitos recursos, não temos o direito de errar tanto. Em segundo lugar, precisamos criar um grupo de especialistas dentro do Estado, nos níveis estadual e federal, para gerir esse setor. Um grupo que estude o setor rotineiramente, que entenda qual é a direção de mudança no mundo. Assim, conseguiremos identificar quais serão as frentes em que o Brasil poderá participar lá no futuro. E, por fim, saber que as cadeias produtivas são cada vez mais partilhadas, isto é, que um número maior de empresas se apropria do valor gerado. Isso abre a possibilidade de que possamos nos acertar dentro dessas cadeias e construamos uma participação mundial. Só com o tamanho do mercado brasileiro, não iremos avançar. Nosso mercado é pequeno frente às escalas de produção exigidas. Devemos acertar sabendo que a resolução de muitos problemas sociais passa pela especialização da tecnologia, ou seja, passa pela produção de chips especializados voltados para a área de educação, saúde, mobilidade urbana, etc.
Além disso, é preciso investir em educação e formação de mão de obra. O último estudo que vi para fazer uma fábrica de US$ 3 bilhões de investimento em memória, numa empresa de microeletrônica, exigia uns 200 engenheiros e, no Brasil, não chegam a 50 engenheiros especializados em manufatura microeletrônica. Não dá nem para operar uma fábrica! Em Manaus existem duas universidades públicas. A UEA (Universidade do Estado do Amazonas) não tem curso de doutorado no setor! Lá, só agora estão sendo criados cursos de doutorado em microeletrônica, robótica, informática. Então, eles têm produção industrial há décadas, mas a formação de recursos humanos ainda é precária. É preciso criar recursos humanos. Mas, enquanto não resolvemos o problema de educação desde a base, as empresas podem ajudar na formação especializada de recursos humanos.
IEDI: Em relação aos eletrônicos de consumo, qual a perspectiva de evolução do mercado doméstico?
Benjamin Sicsú: O Brasil vai continuar consumindo anualmente em torno de 15 milhões de televisores, 8 milhões de geladeiras, 5 ou 6 milhões de máquinas de lavar... Acho isso razoável, especialmente porque cada vez mais esses produtos contam com eletrônica embarcada. E, por essa razão, o mercado está cada vez mais concentrado, à exceção de fogões onde existe um número maior de produtores porque são produtos mais simples. Nos segmentos mais especializados, temos uma meia dúzia de produtores só.
No caso de máquinas de lavar, temos uns 15 fabricantes no país, porque ainda existe demanda para tanquinhos. A questão é que o mercado está cada vez mais migrando para as máquinas automáticas. Com isso, daqui a alguns anos, não teremos mais do que 4 ou 5 produtores. O mesmo ocorre para televisores e geladeiras.
O governo também tem responsabilidade nessa concentração, porque têm dificuldade de atrair novos players. Fica mudando regras numa velocidade tão rápida que ninguém consegue fazer contas. E toda vez que altera uma regra e exige mais componentes periféricos locais, as grandes verticalizam mais essa produção se tornando ainda mais competitivas que os menores que terão o mesmo componente com o dobro do custo e assim tendem a diminuir e até desaparecer não por incompetência em gerir o negócio, mas em razão da política não isonômica. Pelo menos que faça uma política que dure uns dois anos...
IEDI: E os fornecedores da indústria de eletrodomésticos?
Benjamin Sicsú: Os fornecedores são poucos, é tudo muito concentrado para os componentes mais significativos em valor. Veja o caso de geladeiras e máquinas de lavar; quantos produtores de compressores existem hoje? Apenas 2. Motores? São poucos também. Os fornecedores que estão desaparecendo são aqueles de componentes simples, como as partes plásticas e metálicas.
O número de fornecedores estratégicos está caindo e tampouco existe política pública para reverter isso. Por exemplo, há empresas que prometeram trazer fábricas de compressores para o Brasil e continuam só prometendo, apesar dos incentivos, exigindo ainda que os fabricantes do bem final façam a transferência de tecnologia para que eles apenas cuidem da produção.
IEDI: E com relação a computadores?
Benjamin Sicsú: Desktop, onde você ainda tinha algumas empresas nacionais relativamente pequenas, está desaparecendo. Essas empresas, que eram na verdade montadoras, conseguiam comprar os componentes e, quase que no fundo do quintal, montar um desktop. Como isso não é possível para notebooks, muito menos para tablets ou smartphones, a grande maioria delas está condenada.
IEDI: Para finalizar, vamos à ponta da cadeia... Nos últimos anos, vimos, por um lado, um avanço da concentração das redes de varejo de eletroeletrônicos e um ganho de importância das vendas online. De outro lado, a própria indústria de eletroeletrônicos tem aberto lojas físicas, que funcionam como show room, ou vendas diretas por meio de seus sites. Como avalia esses movimentos?
Benjamin Sicsú: As lojas abertas pelos fabricantes em shoppings são lojas-conceito; embora algumas vendam produtos, isso não é o mais relevante. Em relação às vendas pela internet, por enquanto, os fabricantes avaliam que é preferível não entrar em vendas diretas, acham melhor manter as relações com os varejistas. Apesar disso, a venda direta é muito estudada e avaliada pela indústria.
Nos últimos anos aconteceu algo muito interessante no Brasil. As relações do varejo com a indústria eram conflituosas... Dois senhores de nariz empinado... Era uma briga geral. A Secretaria Nacional do Consumidor (SENACON), do Ministério da Justiça, começou a fazer uma série de políticas públicas e regras que nos obrigou a trabalhar em conjunto. Então, hoje, indústria e varejo trabalham juntos para resolver diversos problemas da cadeia, como por exemplo: logística reversa, que é um problema complexo que gera custos razoáveis; o atendimento ao consumidor, em que há várias experiências de compartilhamento de centrais, etc. Nisso tudo, estou falando dos grandes varejistas.
No caso dos pequenos, a indústria trabalha com distribuidores. Por enquanto, não acredito que essa relação mudará.
No caso de celulares, há uma particularidade. No passado, quase 100% das vendas eram por meio das operadoras de celulares, que subsidiavam o aparelho. Isso, hoje, está começando a acabar. Atualmente, as operadoras representam apenas 40% das vendas de celulares, sendo os outros 60% vendidos por varejistas. Cada vez mais, as operadoras estão retirando o subsídio aos aparelhos como forma de venda de seus planos de telefonia. Acredito que em 3 anos a venda por meio de operadoras com subsídio nos planos não passará de 10%. Esse movimento vai aproximar o mercado brasileiro do funcionamento que encontramos no resto do mundo.
O que tem avançado nessa relação da indústria com o varejo, e que é importante, é o compartilhamento dos riscos. Cada vez mais, a indústria estabelecerá uma relação com o grande varejo em que se fixa um determinado volume de venda mensal (podendo ser ajustado, claro) com antecedência de 8 a 10 meses. Assim o varejo corre riscos junto com a indústria. Isso é importante porque a estabilidade do volume de produção favorece muito a indústria. Algumas empresas já estabeleceram esse tipo de contrato, o que tem ajudado a baratear muito os custos de produção e a alavancar negócios com o varejista. Dessa maneira conseguem propor um preço mais baixo pelos produtos. Cada um corre seu risco. Se aumentar a venda, a indústria produz mais ao mesmo preço; se as vendas caírem, o varejo encontra uma forma de lidar com seus estoques.
Esse tipo de estratégia envolve atualmente linhas de produto maiores – como geladeiras, televisores – e é estabelecida apenas com grandes varejistas. Mas, poderá ser estendida para outros aparelhos, como smartphones, e também com distribuidores atacadistas. É um caminho para se obter competitividade.