Carta IEDI
Um Retrato da Situação Atual de Vulnerabilidade Externa da Economia Brasileira
A Carta IEDI de hoje analisa a vulnerabilidade externa da economia brasileira a partir de três perspectivas complementares. Em primeiro lugar, analisa-se a situação dos fluxos, ou seja, o resultado das contas externas em 2013. Em segundo lugar, examina-se a situação dos estoques, isto é, a evolução do passivo externo líquido (PEL) e dos seus componentes. Em terceiro lugar, calcula-se um conjunto de indicadores de vulnerabilidade externa que levam em consideração as duas dimensões (fluxos e estoques) e, assim, sintetizam a situação atual dessa vulnerabilidade no curto (liquidez externa) e médio e longo prazos (solvência externa).
Este tema é de extrema relevância diante do início, em janeiro, do chamado tapering do FED norte-americano. Ademais, o Brasil foi incluído, ao lado da Turquia, África do Sul, Índia, Indonésia, no grupo dos “os cinco frágeis”, que seriam os mais vulneráveis à progressiva normalização das condições monetárias nos Estados Unidos devido aos elevados déficits em transações correntes, altas taxas de inflação e/ou desaceleração do crescimento.
No que se refere à dimensão dos fluxos, uma das principais evidências da deterioração das contas externas brasileiras nos últimos anos é a trajetória ascendente do déficit em transações correntes (DTC) desde 2009. Em 2013, essa deterioração se intensificou em função, sobretudo, de três resultados negativos:
- O forte aumento do DTC, que avançou 50% frente a 2012, atingindo seu recorde histórico, de US$ 81,4 bilhões (ou 3,6% do PIB);
- A forma de financiamento do DTC, que, pela primeira vez desde 2008, não foi integralmente coberto pelo Investimento Direto Estrangeiro (IDE), ampliando a dependência do país em relação ao ingresso de investimento de portfólio estrangeiro (IPE), modalidade volátil de capital externo;
- O déficit de US$ 6 bilhões do Balanço de Pagamentos (BOP), o primeiro desde o ano 2000, que foi financiado pela venda de reservas internacionais.
O acúmulo de DTC ao longo dos anos tem como consequência o aumento do PEL, que é o resultado da diferença entre o passivo externo bruto (PEB) e o ativo externo bruto (AEB). Além do tamanho desse passivo, sua composição também é relevante por duas razões principais. A primeira, relevante para a situação de liquidez externa, refere-se aos diferentes graus de volatilidade de cada modalidade do PEB, quais sejam: IDE; IPE; e outros investimentos estrangeiros (OIE). A segunda, que interfere na situação de solvência externa, diz respeito à taxa de remuneração (ou serviço financeiro) de cada modalidade do PEL (ou seja, remessas líquidas de juros, lucros e dividendos e amortizações da dívida), que também é bastante heterogênea.
No período 2009-2013, o PEB cresceu 40% (de US$ 1.080 bilhões para US$ 1.515 bilhões), em função, sobretudo, do aumento do estoque de IDE, que avançou 82%, contra 75% dos OIE e somente 3% do IPE. Assim, durante a fase de alta do ciclo de fluxos de capitais que sucedeu a crise financeira global, a modalidade menos volátil de capital externo foi a principal responsável pelo aumento do PEB, que equivale ao ativo externo (direitos) dos não-residentes no Brasil. Esse resultado explica-se tanto pelos fatores de atração do IDE – investimentos nos setores produtores de commodities, com preços em alta até 2011, e nos setores de comércio e serviços beneficiados pelo crescimento da massa de rendimentos –, como por fatores que evitaram uma expansão mais expressiva dos ingressos de IPE: os mecanismos de gestão dos fluxos de capitais vigentes até maio de 2013 e a turbulência nos mercados financeiros internacionais provocada pela crise do Euro e pelas incertezas quanto à política monetária estadunidense.
Ademais, esses mecanismos também contribuíram para a redução do passivo externo de curto prazo - PECP, que inclui a dívida externa de curto prazo e o estoque de investimento de portfólio no país. Esse passivo, que somou US$ 501 bilhões em dezembro de 2013, é uma das variáveis fundamentais para a análise da situação de liquidez externa, já que equivale aos recursos que podem sair rapidamente do país (interrupção da rolagem dos empréstimos externos e/ou resgate pelos não-residentes das aplicações no país em questão).
Já a solvência externa, que reflete a vulnerabilidade externa no médio e longo prazos, depende da trajetória do PEL e do seu serviço financeiro (ou seja, sua taxa de remuneração). O PEL da economia brasileira atingiu US$ 758 bilhões em 2013, cifra 26,2% maior que a registrada em 2009 (US$ 550 milhões). Esse crescimento foi resultado do avanço de 83,9% do investimento direto (ID), de 1,6% do investimento de portfólio (IP) e de 122% dos outros investimentos (OI). Contudo, houve recuo em relação ao resultado dos três anos anteriores (2010, 2011 e 2012) em função de uma combinação de fatores. Em primeiro lugar, a manutenção da estratégia de acúmulo de reservas cambiais. Em segundo lugar, o efeito da depreciação cambial e da desvalorização das ações brasileiras em 2013 (que reduziu o valor em US$ dos estoques de ativos de não-residentes no país). Em terceiro lugar, a maior taxa de crescimento do AEB frente ao PEB (57,9% contra 40,3%), resultado do avanço no processo de internacionalização dos capitais brasileiros, sob liderança dos investimentos diretos das empresas brasileiras.
Para completar a análise da situação atual de liquidez e solvência externa da economia brasileira, foram calculados um conjunto de indicadores, bem mais abrangente que o utilizado nas análises recentes sobre o tema – de forma geral, indicadores relacionados à dívida externa, que fornecem uma visão incompleta da vulnerabilidade externa de uma economia. Isso porque, a dívida externa de curto prazo é atualmente uma fração muito pequena do PECP e a dívida externa líquida é negativa desde 2007 (devido à redução da dívida externa pública e ao acúmulo de reservas internacionais).
A situação de liquidez externa foi avaliada a partir de quatro indicadores, cujo fator comum é a utilização no denominador das reservas internacionais (ou seja, os recursos em divisas que podem ser mobilizados no curto prazo frente a uma saída súbita de capitais externos), se diferenciando somente na composição do numerador, quais sejam:
- Indicador 1: razão entre a dívida externa de curto prazo e as reservas
- Indicador 2: utilizado pela agência de classificação de risco de crédito Standard & Poors, considera no numerador as necessidades brutas de financiamento externo (NBFE), que equivalem à soma do saldo em transações correntes, com o principal vencível da dívida externa de médio e longo prazo nos próximos 12 meses e o estoque da dívida de curto prazo;
- Indicador 3: razão entre o PECP e as reservas;
- Indicador 4: elaborado especialmente para esta Carta, consiste na soma das NBFE com o estoque de IPE; este indicador mede a pressão potencial sobre as reservas internacionais do País no curto prazo.
Na comparação de 2007 com 2013, os quatro indicadores mostram uma melhora da situação de liquidez externa da economia brasileira, mas há, claramente, dois grupos bem distintos. O primeiro grupo, que inclui os indicadores 1 e 2, indica uma situação favorável de liquidez externa em dez/2013 (indicadores inferiores a 1), bem como melhor do que a registrada no limiar da crise financeira global (dez/2007). Enquanto naquele momento, a dívida externa de curto prazo absorvia 22% das reservas e as NBFE 24%, em 2013 esses percentuais eram de, respectivamente, 9% e 13%. Já os indicadores do segundo grupo (indicadores 3 e 4, que incluem no numerador do estoque de IPE no país) revelam uma situação desfavorável de liquidez externa, pois superam 1, ou seja, as reservas são insuficientes para fazer frente seja ao PECP, seja à soma “NBFE+estoque de IPE no país”. Contudo, nos dois casos, também houve melhora frente a dez/2007. Considerando o indicador mais amplo (indicador 4), ele recuou de 3,06 para 1,37; isso quer dizer que nas vésperas da crise financeira global a pressão potencial de divisas era 206% maior que as reservas, percentual que recuou para 37% em dez/2013. Vale esclarecer que se utiliza o adjetivo “potencial” porque quando há liquidação das aplicações no mercado financeiro doméstico pelos investidores estrangeiros num regime de câmbio flutuante, o valor em moeda estrangeira do IPE no país diminui em função tanto da queda dos preços dos ativos como da depreciação cambial provocada pela saída de capitais.
Já para avaliar a situação de solvência externa de um país, um indicador fundamental é a razão entre o PEL e as exportações. Isto porque, no caso dos países em desenvolvimento, como o Brasil, as exportações são a fonte de geração autônoma de divisas, necessárias para pagar a taxa de remuneração do PEL. O valor da razão indica o número de anos, dado um determinado fluxo anual de exportação, necessário para o pagamento do PEL. A condição para que esta razão não tenha uma trajetória explosiva é que essa taxa seja inferior ao ritmo de expansão das exportações. Caso contrário, a razão PEL/exportações segue uma trajetória de expansão ilimitada.
No caso do Brasil, cujo desempenho exportador na última década ancorou-se nas vendas externas de commodities, também é importante incluir na análise a capacidade de geração de divisas pela indústria de transformação (IT). Diante do esgotamento do trajetória de alta dos preços de commodities e das mudanças em curso na China – desaceleração e reorientação do padrão de crescimento, que resultarão em menor demanda por produtos agrícolas e minerais –, a trajetória futura das exportações brasileiras será mais dependente do desempenho das vendas externas da IT. Assim, além do indicador tradicional PEL/exportações, três indicadores adicionais de solvência externa foram calculados:
- Serviço do PEL/exportações
- PEL/exportações da IT;
- Serviço do PEL/exportações da IT.
A evolução desses quatro indicadores evidencia que, ao contrário da situação de liquidez externa, a de solvência sofreu deterioração na comparação de dez/2007 e dez/2013. Embora o indicador 1 (PEL/exportações totais) tenha permanecido praticamente no mesmo patamar (2,98 e 2,70, respectivamente), o indicador 2 (PEL/exportações da IT) avançou de 4,63 para 5,19 no mesmo período (ou seja, considerando somente as exportações da IT, seriam necessários mais de 5 anos para pagar o PEL). Os indicadores 3 e 4, que consideram o serviço do PEL no numerador, também indicam piora, com destaque para o indicador 4, que aumentou de 0,37 para 0,58; ou seja, em 2013, o serviço do PEL “consumia” 58% das exportações da indústria de transformação.
O pior desempenho (entre 2007 e 2013) dos indicadores que consideram as exportações da IT no denominador é explicado pela sua menor taxa de crescimento (23%) em relação às exportações totais (52,4%), ao PEL (37,8%) e ao serviço do PEL (90,7%). O crescimento das exportações da IT em 2013 (1,3% contra a queda de 0,4% nas exportações totais) – beneficiado pela depreciação cambial e pela recuperação das economias avançadas – foi um dado positivo, mas insuficiente para compensar o efeito negativo da queda dos preços das commodities. Em 2014, caso essa recuperação tenha continuidade (como prevêem os cenários básicos do FMI e Banco Mundial), essas exportações podem ganhar um impulso adicional, que, todavia, pode ser atenuado (ou até anulado) pela crise cambial na Argentina, principal destino das nossas exportações industriais.
Assim, para garantir uma trajetória sustentável de expansão das vendas externas da IT – fundamental para evitar uma situação de insolvência externa –, ações de política econômica são necessárias. Além de evitar um novo movimento de apreciação da moeda doméstica, o governo deve promover uma melhor coordenação junto à iniciativa privada para estimular os investimentos e a reindustrialização do país, simultaneamente à intensificação das negociações comerciais para a (re)inserção da indústria brasileira nas cadeias globais de valor (como já destacado na Carta IEDI n. 608). Ademais, vale lembrar que as vantagens para o país das exportações de produtos da IT comparativamente às commodities (inclusive industriais): geram efeitos positivos e cumulativos sobre a produtividade da indústria, são menos sujeitas às oscilações de preços nos mercados internacionais e têm maior elasticidade-renda da demanda.
Introdução. Esta Carta analisa a situação atual de vulnerabilidade externa da economia brasileira. Este tema é de extrema relevância diante do início, em janeiro, do chamado tapering, termo utilizado para designar a desmontagem gradual da política de afrouxamento quantitativo (em inglês, quantitative easing – QE) do banco central estadunidense (Federal Reserve – Fed).
Embora tenha começado, como esperado, num ritmo bem mensal bem suave – de US$ 10 bilhões (redução da compra de ativos de US$ 85 bilhões para US$ 75 bilhões), que será mantido em fevereiro – o tapering, ao lado divulgação de indicadores desfavoráveis sobre o desempenho da economia chinesa, desencadeou uma nova fase de turbulência nos mercados cambiais e acionários de algumas economias emergentes na última semana de janeiro. Além da Argentina, em crise cambial aberta, também foram especialmente atingidos Turquia, África do Sul, Índia, Indonésia e Brasil, grupo que passou a ser denominado de “os cinco frágeis” (fragile five) pela imprensa especializada após um estudo do banco Morgan Stanley, divulgado em agosto de 2013, que apontou esses países como os mais vulneráveis ao então provável início do tapering devido aos elevados déficits em transações correntes, altas taxas de inflação e desaceleração do crescimento (Thomas Jr., 2014). A resposta dos governos desses países aos ataques especulativos contras suas moedas e ativos financeiros no final de janeiro foi o aperto na política monetária, que contribuiu para acalmar os ânimos dos investidores internacionais. Vale mencionar que, dos “cinco frágeis”, somente no Brasil tinha iniciado uma nova fase de alta da meta da taxa de juros básica em 2013.
De acordo com os cenários básicos para 2014 tanto o Fundo Monetário Internacional - FMI (IMF, 2014) como o Banco Mundial (World Bank, 2014), esses ânimos devem se manter contidos ao longo do ano. Esses cenários preveem um impacto suave do “tapering” sobre os fluxos privados de capitais para os países emergentes e em desenvolvimento em 2014 será suave. Na estimativa do Banco Mundial, esses fluxos devem recuar de 4,6% do PIB em 2013 para 4,2% do PIB em 2014, patamar ainda elevado em termos históricos. Esses cenários também projetam uma aceleração do crescimento da economia mundial de 3% em 2013 para 3,7% em 2014. A hipótese subjacente é que a trajetória de recuperação nas economias avançadas em curso desde meados de 2013 ganhará impulso adicional no corrente ano, resultando numa taxa de expansão 0,9 p.p superior à registrada em 2013 (1,3% para 2,2%). No caso dos países emergentes e em desenvolvimento, a aceleração será mais modesta, de somente 0,5 p.p (4,8% para 5,3% para o World Bank e 4,7% para 5,1% para o FMI).
Assim, nesses cenários, se, por um lado, o “tapering” afetará negativamente, embora de forma suave, as economias emergentes pelo canal das “finanças internacionais”, por outro lado, a aceleração do crescimento das economias avançadas as beneficiará pelo canal da “demanda externa”. Ou seja, as importações dessas economias, que iniciaram uma trajetória de recuperação em 2013, devem ganhar impulso adicional em 2014. Segundo o FMI, seu ritmo de expansão deve atingir 3,4%, 2 p.p acima da estimativa para 2013. Já o volume total do comércio internacional (avançadas e emergentes) deve avançar cerca de 4,5%. Esse efeito positivo, contudo, se concentrará nos países exportadores de bens manufaturados. O valor unitário exportado desses bens deve crescer 1,6% em 2014, após dois anos consecutivos de queda (1,2% em 2012 e 1,4% em 2013), segundo o Banco Mundial.
Já nas economias emergentes produtoras de commodities, o aumento das quantidades exportadas será atenuado ou anulado pela queda dos preços desses bens, de acordo com as projeções (nesse quesito, bastante díspares) das duas instituições multilaterais: para o FMI, a deflação dos preços das commodities não-energéticas será de 6,1% em 2014 (frente a 1,5% em 2013) e para o Banco Mundial 2,6% (contra 7,2% em 2013). Uma das hipóteses subjacentes é a mudança na composição do crescimento da China, menos intensiva em investimento (e, assim, em importações de produtos básicos).
O efeito líquido desses canais (finanças internacionais, demanda externa e preços das commodities) sobre cada país emergente dependerá de vários fatores, dentre os quais, a situação das contas externas (resultado em conta corrente, composição da pauta de comércio exterior e dos fluxos de capitais), o tamanho e composição do PEL, o grau de abertura financeira e de liquidez dos mercados cambiais e acionários, a participação dos investidores estrangeiros nos mercados financeiros domésticos e grau de endividamento em moeda estrangeira.
Em relação ao canal “finanças internacionais”, vale destacar que novas fases de turbulência nos próximos meses não devem ser descartadas. Pelo contrário, o ano de 2014 deve ser marcado pela alternância de fases de turbulência e calmaria nos mercados financeiros internacionais, diante dos riscos que ainda permeiam o desempenho da economia mundial, dentre as quais a ameaça de deflação nas economias avançadas, a incerteza quando à robustez do crescimento nos Estados Unidos e ao ritmo de desaceleração da China e a persistência dos problemas estruturais da área do Euro.
Nesta Carta Iedi, a vulnerabilidade da economia brasileira às mudanças nas condições comerciais e financeiras da economia global ao longo de 2014 é analisada a partir de três perspectivas complementares. Em primeiro lugar, analisa-se a situação dos fluxos, ou seja, o resultado das contas externas em 2013. Em segundo lugar, examina-se a situação dos estoques, isto é, a evolução do passivo externo líquido (PEL) e dos seus componentes após a crise financeira global de 2008. Em terceiro lugar, calcula-se um conjunto de indicadores de vulnerabilidade externa que levam em consideração as duas dimensões (fluxos e estoques) e, assim, sintetizam a situação atual dessa vulnerabilidade no curto (liquidez externa) e médio e longo prazos (solvência externa), que é contraposta à vigente antes da eclosão dessa crise (dez/2007).
A Dimensão dos Fluxos: As Contas Externas em 2013. Uma das principais evidências da deterioração da situação das contas externas brasileiras (retratadas pelo resultado do balanço de pagamentos) nos últimos anos é a trajetória ascendente do déficit em transações correntes (DTC) desde 2009, que tem como contrapartida o aumento do PEL. A forma de financiamento desse déficit também deve ser considerada uma vez que ela afetará a composição desse passivo e, consequentemente, sua taxa de remuneração (ou serviço financeiro), que consiste na soma das rendas de investimento (remessas líquidas de juros, lucros e dividendos) com as amortizações da dívida externa.
Em 2013, essa deterioração se intensificou em função de dois fatores. O primeiro foi o expressivo aumento do DTC, que avançou 50% frente a 2012, atingindo seu recorde histórico, de US$ 81,4 bilhões (ou 3,6% do PIB). Nos dois anos anteriores (2011 e 2012), as taxas de crescimento foram, respectivamente, 11% e 3,4%, e os déficits de US$ 52,5 bilhões e US$ 54,2 bilhões. O principal determinante deste aumento foi a redução do superávit comercial em mais de 80%, de US$ 19,5 bilhões em 2012 para US$ 2,56 bilhões em 2013, associada à queda dos preços das commodities exportadas pelo Brasil num contexto de desaceleração da demanda da China e aumento da importação de bens industriais (ver Carta IEDI n.608). Na realidade, essa queda foi um pouco menor, pois US$ 4,5 bilhões de importações de petróleo realizadas em 2012 foram contabilizadas em 2013. Contudo, mesmo se corrigirmos essa distorção, registrando esse valor em 2012, o recuo do saldo comercial continuaria sendo significativo, de US$ 14,8 bilhões em 2012 para US$ 7 bilhões em 2013 (-52,6%).
Ademais, as subcontas de “Serviços” e “Rendas” também ampliaram seus respectivos déficits, contribuindo para a alta do DTC. Nos “Serviços”, três segmentos (de um total de 14) foram responsáveis pelo aumento do déficit (recorde da série histórica do Banco Central do Brasil - BCB), quais sejam: transportes (fretes), viagens internacionais e aluguel de equipamentos (além do aluguel de aviões comerciais, há o efeito contábil da importação fictícia de plataformas de exploração pela Petrobrás para usufruir de benefício fiscal). No caso das rendas, as empresas transnacionais ampliaram as remessas de lucros e dividendos ao exterior num contexto de desaquecimento econômico interno e rentabilidade ainda reduzida nos países de origem das matrizes.
Embora fatores tributários (efeito-petrobrás) e conjunturais (efeito-preços das commodities) tenham contribuído para piora do desempenho das transações correntes em 2013, seus principais determinantes são estruturais, dentre os quais: a perda de competitividade de indústria brasileira (tema recorrentemente tratado nas Cartas Iedi); a virtual inexistência de empresas nacionais prestadoras de serviço de frete; a melhora da distribuição de renda e a possibilidade de parcelamento de pacotes de viagens e passagens aéreas (inexistente em outros países), que parece ter tornado os gastos com viagens internacionais inelástico à taxa de câmbio; o elevado grau de internacionalização produtiva e financeira da economia brasileira, que resulta em déficits significativos na subconta “rendas de investimento”. Em 2013, esses fatores se sobrepuseram aos impactos positivos sobre as exportações de bens manufaturados da depreciação cambial (de 15%), da recuperação da demanda externa das economias avançadas e do baixo dinamismo da atividade econômica interna em 2013.
O segundo fator subjacente à deterioração das contas externas em 2013 foi o valor do ingresso líquido de investimento direto estrangeiro (IDE), que somou US$ 64 bilhões (cerca de 1% inferior ao resultado de 2012), cifra insuficiente (em US$ 17,3 bilhões) para financiar o resultado deficitário das transações correntes. Notar que foi a primeira vez desde 2008 – quando as transações correntes voltaram a ser deficitárias, após o interregno 2003-2007 – que o IDE foi inferior ao DTC.
A relação entre o DTC e o IDE é um dos critérios usualmente utilizados para avaliar a situação das contas externas de um país porque o IDE é a modalidade menos volátil de capital externo. Em 2013, a diferença de US$ 17,3 bilhões foi preenchida pelo ingresso de investimento de portfólio estrangeiro (IPE), que somou US$ 34,7 bilhões, cifra 110% superior à registrada em 2011. Esse aumento foi o responsável pelo melhor desempenho dos fluxos financeiros (investimentos de portfólio e outros investimentos) em 2013, que somaram US$ 54,5 bilhões, um avanço de 30,7% frente ao resultado de 2012 (US$ 41,6 bilhões). Assim, embora não tenha sido suficiente para financiar o DTC, o ingresso líquido de IDE continuou superior à entrada desses fluxos em 2013, padrão também observado em 2012.
Chama atenção o crescimento do ingresso líquido de IPE, apesar da piora nas condições financeiras internacionais no segundo e terceiro trimestres após a sinalização pelo Fed em maio de que o “tapering” poderia começar em 2013. Os principais determinantes desse resultado foram o aumento do diferencial entre os juros internos e externos decorrente da nova fase de alta da meta da taxa Selic e a eliminação do controle de capital (IOF de 6%) sobre as aplicações de não-residentes em títulos de renda fixa no país. Nesse novo ambiente macroeconômico e regulatório, essas aplicações atingiram o recorde histórico de US$ 25,5 bilhões em 2013.
Apesar desse desempenho excepcional dos investimentos externos em títulos de renda fixa no país, o superávit de US$ 72,8 bilhões na conta financeira em 2013 foi insuficiente para financiar o DTC. Com isso, pela primeira vez desde 2000, o resultado do balanço de pagamentos (BOP) foi deficitário em cerca de US$ 6 bilhões.
Resultados negativos no balanço de pagamentos devem ser motivo de preocupação caso sejam recorrentes. Em 2013, o déficit foi pequeno, sendo coberto, “com folga”, pela venda de reservas internacionais pelo BCB, que recuaram somente 3,8% frente ao patamar de dez/ 2012, fechando o ano em US$ 359 bilhões, cifra bem superior ao estoque de reservas dos demais “cinco frágeis” (Thomas Jr., 2014). Para 2014, o BCB prevê um superávit de US$ 20,5 bilhões, tanto em função da redução do DTC (para US$ 78 bilhões) como do maior superávit na conta capital e financeira (que deve atingir US$ 98,5 bilhões). Contudo, se as projeções se confirmarem, o ingresso líquido de IDE (US$ 63 bilhões) será insuficiente, pelo segundo ano consecutivo, para financiar o DTC.
Em suma, do ponto de vista dos fluxos, três resultados negativos das contas externas brasileiras em 2013 chamam atenção: o forte aumento do DTC; a forma de financiamento do DTC, que não foi integralmente coberto pelo ingresso líquido de IDE, ampliando a dependência do país de fluxos de capitais mais voláteis; e o déficit do BOP. Todavia, esses resultados, embora importantes, fornecem um retrato incompleto da situação da vulnerabilidade externa da economia brasileira. Para obter uma fotografia completa e nítida é necessário examinar a evolução dos PEL e seus componentes e dos indicadores de liquidez e solvência externas, tarefas realizadas nas duas próximas seções.
A Dimensão dos Estoques: A Evolução do Passivo Externo. Como já destacado, o acúmulo de DTC ao longo dos anos tem como consequência o aumento do PEL, que é o resultado da diferença entre o passivo externo bruto (PEB) e o ativo externo bruto (AEB). Esses três termos tradicionais na literatura econômica são sinônimos, respectivamente, dos conceitos “Posição internacional de investimento”, “Posição internacional de investimento – Passivo” e “Posição internacional de investimento – Ativo”, utilizados na metodologia atual do Balanço de Pagamentos (ver Quadros 60 e 60A da Nota para Imprensa do Setor Externo). No caso da economia brasileira, que tem PEL positivo, a posição internacional de investimento é negativa. Já um país que tem PEL negativo (ou seja, um ativo externo líquido), a posição internacional de investimento é positiva.
Além do tamanho desse passivo, sua composição também é relevante por duas razões principais. A primeira, relevante para a situação de liquidez externa, refere-se aos diferentes graus de volatilidade de cada modalidade do PEB, quais sejam: IDE; IPE; e outros investimentos estrangeiros (OIE). A segunda, que afeta a situação de solvência externa, diz respeito à taxa de remuneração (ou serviço financeiro) de cada modalidade do PEL (ou seja, remessas líquidas de juros, lucros e dividendos e amortizações da dívida), que também é bastante heterogênea.
Antes de analisar a evolução do PEL e dos seus componentes (PEB e AEB), é importante esclarecer que essa evolução é afetada não somente pelo desempenho dos fluxos ao longo dos anos (resultado da conta financeira) mas também pelas variações dos preços dos ativos (por exemplo, valorização das ações que compõem o portfólio dos investidores não-residentes) e da taxa de câmbio, que afeta o valor em US$ dos estoques de IDE e do investimento estrangeiro de portfólio no país. Assim, a expressiva queda no valor do PEB em 2008 decorreu não somente da liquidação de posições desses investidores em ativos no mercado financeiro doméstico, mas também da forte depreciação do real e das ações no último trimestre daquele ano.
No período 2009-2013, o PEB cresceu 40% (de US$ 1.507 bilhões para US$ 1.515 bilhões), em função, sobretudo, do aumento do estoque de IDE, que avançou 82%, contra 75% dos OIE e somente 3% do IPE. Assim, durante a fase de alta do ciclo de fluxos de capitais que sucedeu a crise financeira global, a modalidade menos volátil de capital externo foi a principal responsável pelo aumento do ativo externo (direitos) dos não-residentes no Brasil. Esse resultado explica-se tanto pelos fatores de atração do IDE – investimentos “resourse seeking” nos setores produtores de commodities, com preços em alta até 2011, e investimentos “market seeking” nos setores de comércio e serviços beneficiados pelo crescimento da massa de rendimentos –, como por fatores que evitaram uma expansão mais expressiva dos ingresso de IPE: os mecanismos de gestão dos fluxos de capitais vigentes até maio de 2013 e a turbulência nos mercados financeiros internacionais provocadas pela crise do Euro e pelas incertezas quanto à política monetária estadunidense.
Ademais, esses mecanismos também contribuíram para a redução do passivo externo de curto prazo – PECP (pode ser regatado num curto período), que inclui a dívida externa de curto prazo (que recuou 42,7% entre 2010 e 2013, de US$ 57 bilhões para US$ 33 bilhões) e o estoque de investimento de portfólio no país (que passou de US$ 564 bilhões para US$ 468 bilhões no mesmo período, uma queda de 17%). Esse passivo, que somou US$ 501 bilhões em dezembro de 2013, é uma das variáveis fundamentais para a análise da situação de liquidez externa, já que equivale aos recursos que podem sair rapidamente do país (interrupção da rolagem dos empréstimos externos e/ou resgate pelos não-residentes das aplicações no país em questão).
Já a solvência externa reflete a vulnerabilidade externa no médio e longo prazos e depende da trajetória do PEL e do seu serviço financeiro (a taxa de remuneração do PEL). Para não entrar numa trajetória insustentável de acumulação de passivos externos em termos líquidos, a economia em questão precisa gerar divisas – no caso dos países em desenvolvimento, como o Brasil, mediante exportações, sua fonte de geração autônoma de divisas – num montante suficiente para honrar o pagamento desse serviço.
Assim, um país que incorreu sucessivamente em DTC e acumulou PEL pode ser solvente (se a condição acima for cumprida) e, ao mesmo tempo, enfrentar uma situação de iliquidez externa (insuficiência de divisas no curto prazo para fazer frente aos compromissos em moeda estrangeira), que culmina numa crise cambial. Esta foi, por exemplo, a situação enfrentada pela Coréia do Sul na crise de 1997.
O PEL da economia brasileira atingiu US$ 758 bilhões em 2013, cifra 26,2% à registrada em 2009 (US$ 550 milhões), primeiro ano da fase de alta do ciclo de fluxos de capitais do pós-crise financeira global. Esse crescimento foi resultado do avanço de 83,9% do investimento direto (ID), de 1,6% do investimento de portfólio (IP) e de 122% dos outros investimentos (OI). Contudo, houve recuo em relação ao resultado dos três anos anteriores (2010, 2011 e 2012) em função de uma combinação de fatores.
Em primeiro lugar, a manutenção da estratégia defensiva de acúmulo de reservas cambiais, que constituem o “colchão de liquidez em moeda estrangeira” do pais. Em segundo lugar, como já mencionado, a depreciação cambial e a desvalorização das ações brasileiras (que compõem o portfolio dos investidores estrangeiros), que reduziram o valor em US$ em 2013 dos estoques de ativos de não-residentes no país. Esse último fator explica a queda do estoque de IPE entre 2010 e 2013, apesar do ingresso líquido nesse período. Vale lembrar que os mecanismos de gestão dos fluxos de capitais também contribuíram para esse resultado, pois, na sua ausência, esse ingresso teria sido muito maior.
Em quarto lugar, a maior taxa de crescimento do AEB frente ao PEB (57,9% contra 40,3%). No período em tela, a internacionalização dos capitais brasileiros avançou significativamente, sob liderança dos investimentos diretos externos das empresas brasileiras (IDB), que atingiram US$ 293 bilhões em 2013. Embora com estoques ainda pequenos, os investimentos de portfólio brasileiros (IPB) e os outros investimentos brasileiros (OIB), também cresceram a taxas expressivas (60,4% e 31%, respectivamente). Essa internacionalização contribui para a melhora da situação de solvência externa na medida em que o AEB também gera serviços financeiros, mas que são recebidos pelos residentes no Brasil; assim, as remessas de lucros, juros e dividendos associadas ao AEB reduzem a taxa de remuneração líquida do PEL.
O pequeno estoque de IPB (em função, em grande medida, do alto patamar da taxa de juros brasileira, que desestimula a diversificação internacional das carteiras) também está por detrás da composição do PEL. Seu principal componente ao longo de todo o período analisado foi o IP - que respondeu por 73% do total em 2013 –, seguido pelo ID e pelos OI (nesse mesmo ano, 57,3% e 16,1%, respectivamente). Isso porque, embora o estoque bruto de IDE seja maior que o estoque de IPE, a maior internacionalização produtiva relativamente à financeira dos capitais brasileiros resulta num estoque líquido de investimento direto menor do que de investimento de portfólio (respectivamente, US$ 435 bilhões e US$ 554 bilhões em 2013).
Essa composição certamente não é positiva para a situação de liquidez externa, mas, do ponto de vista da solvência externa, ela não é necessariamente adversa. Como ressalta Kregel (1996), se, por um lado, o IDE é a modalidade mais estável de passivo externo, ele também deve ter uma lucratividade bastante elevada para compensar sua menor liquidez e maior risco (relacionado à operação num país estrangeiro) que as demais modalidades de capital externo. Ou seja, o prêmio de risco associado ao IDE pode ser maior que o relacionado às demais modalidades, resultando em remessas de lucros e dividendos significativas. Isso quer dizer que, mesmo quando financiado integralmente pelo IDE, DTC sucessivos no tempo não são desejáveis, pois resultam no aumento do PEL e do seu serviço financeiro. Ademais, no caso do Brasil, o fato de grande parte do IDE ter-se direcionado para setores não comercializáveis (serviços) ou para indústrias com foco, sobretudo, no mercado doméstico (por exemplo, automobilística e alimentos) cria um descompasso estrutural entre essas remessas e a geração de divisas pelas empresas transnacionais (Ets) presentes no país.
Para completar a análise da situação atual de liquidez e solvência externa da economia brasileira, a próxima seção apresenta um conjunto de indicadores de vulnerabilidade externa, bem mais abrangente que o utilizado nas análises recentes sobre o tema. Estas têm priorizado indicadores relacionados à dívida externa – que é comparada às reservas ou ao PIB (para mensurar, respectivamente, a liquidez e a solvência externas) –, os quais, na perspectiva aqui adotada, fornecem uma visão incompleta da vulnerabilidade externa de uma economia. Isso porque, a dívida externa de curto prazo é atualmente uma fração muito pequena do PECP e a dívida externa líquida é negativa desde 2007 (devido à redução da dívida externa pública e ao acúmulo de reservas internacionais).
Os Indicadores de Vulnerabilidade Externa. Um indicador sintético de liquidez externa (ou da vulnerabilidade externa no curto prazo) é a razão entre o PECP e as reservas internacionais do país (ou seja, os recursos em divisas que podem ser mobilizados no curto prazo frente a uma saída súbita de capitais externos). Além deste indicador, também foram calculados três indicadores, cuja característica comum é a utilização das reservas internacionais no denominador, se diferenciando somente na composição do numerador, quais sejam:
• Dívida externa de curto prazo/reservas: visa avaliar se há ou não possibilidade de crise de liquidez externa por falta de moeda estrangeira para honrar a dívida externa a vencer num prazo inferior a 360 dias;
• Indicador utilizado pela agência de classificação de risco de crédito Standard & Poors: considera no numerador as necessidades brutas de financiamento externo (NBFE), que equivalem à soma do saldo em transações correntes, com o principal vencível da dívida externa de médio e longo prazo nos próximos 12 meses e o estoque da dívida de curto prazo;
• Indicador amplo de liquidez externa: elaborado especialmente para esta Carta, consiste na soma das NBFE com o estoque de IPE; este indicador mede a pressão potencial sobre as reservas internacionais do País no curto prazo.
O significado de todos indicadores de liquidez que utilizam as reservas no denominador é semelhante: se o valor da razão for igual a 1, as reservas são suficiente para cobrir o estoque em questão (PECP ou dívida externa de curto prazo) e/ou as NBFE; se for inferior a 1, as reservas são mais que suficientes para cobrí-los (por exemplo, um indicador igual a 0,20 significa que somente 20% das reservas serão utilizadas); se for superior a 1, as reservas são insuficientes (por exemplo, um indicador igual a 1,20 significa que as reservas precisariam ser 20% maiores para fazer frente à pressão cambial).
Na comparação de 2007 com 2013, os quatro indicadores mostram uma melhora da situação de liquidez externa da economia brasileira, mas há, claramente, dois grupos com patamares bastante distintos.
O primeiro grupo, que inclui os indicadores 1 e 2, indica uma situação não somente favorável de liquidez externa em dez/2013 (indicadores inferiores a 1), mas também bem melhor do que a registrada no limiar da crise financeira global (dez/2007). Enquanto em 2007, a dívida externa de curto prazo absorvia 22% das reservas e as NBFE 24%, em 2013 esses percentuais eram de, respectivamente, 9% e 13%. Em comparação ao indicador 1 (o mais utilizado nas análises recentes), o indicador 2 (Standard & Poors) é mais abrangente pois considera no numerador, além dessa dívida, o resultado das transações correntes (que, se negativo, como no caso do Brasil, aumenta as NBFE) e o principal vencível das dívidas de médio e longo prazo no ano. Contudo, a pressão sobre as reservas exercida por esses dois últimos fatores em dez/2013 era bem pequena, de apenas 4% em dez/2013.
O segundo grupo engloba os indicadores 3 e 4, cujo denominador comum é a inclusão, no numerador, do estoque de IPE no país. Ambos indicadores indicam uma situação desfavorável de liquidez externa, pois superam 1, ou seja, as reservas são insuficientes para fazer frente seja ao PECP, seja à soma “NBFE + estoque de IPE no país”. Contudo, nos dois casos, o grau de cobertura cambial era muito maior em dez/2013 do que em dez/2007: neste mês, o PECP superava em 204% o estoque de reservas, percentual que recuou para 33% em dez/2013; no caso da soma “NBFE+portfólio no país” os percentuais eram de 206% e 37%. Esses resultados decorreram tanto do aumento do denominador (alta de 108% das reservas), como da redução dos numeradores (o PECP diminuiu 8,7% e aquela soma 6,6%).
Assim, o indicador mais amplo (indicador 4) revela que, embora a situação de liquidez externa da economia brasileira seja melhor do que a vigente antes da crise financeira global, nosso “colchão de segurança” ainda é 37% insuficiente para cobrir a demanda potencial de divisas (medida pela soma “NBFE+portfólio no país”, ou seja, o numerador do indicador 4). Contudo, também é preciso levar em consideração a composição do PECP, que é atualmente mais favorável por dois motivos. Por um lado, a participação da dívida de curto prazo no total - que gera compromissos em divisas (juros e amortizações) e envolve descasamento de moedas – recuou ainda mais no período analisado (7,1% em dez/2007 para 6,6% em dez/2013) como reflexo do alongamento do prazo da dívida externa em resposta aos controles de capitais vigentes em 2011 e 2012. Por outro lado, como destaca Biancareli (2012), no caso dos investimentos de portfólio no país (que respondiam por mais de 90% do PECP nos dois momentos), quando há liquidação de posições dos investidores estrangeiros em moeda doméstica num regime de câmbio flutuante, o valor em moeda estrangeira dessa modalidade de passivo externo diminui em função tanto da queda dos preços dos ativos em moeda doméstica como da depreciação cambial provocada pela saída de capitais. É exatamente essa desvalorização do estoque de ativos financeiros de não residentes no país, medida em US$, que explica a queda dos indicadores de liquidez em 2008.
Em contrapartida, a composição atual do PECP – predominância de IPE no país, viabilizada pelo aprofundamento da abertura financeira após o ano de 2000 – também tem uma implicação negativa: ela reforça as correias de transmissão da instabilidade gerada nos mercados financeiros internacionais (que condicionam as decisões de alocação de portfólio dos investidores não residentes) para o mercado financeiro doméstico.
Já para avaliar a situação de solvência externa de um país, um indicador fundamental é a razão entre o PEL e as exportações. Isto porque, como já mencionado, no caso dos países em desenvolvimento, como o Brasil, as exportações são a fonte de geração autônoma de divisas, necessárias para pagar a taxa de remuneração do PEL. Como destacam Medeiros e Serrano (2001), para que essa razão não tenha uma trajetória explosiva, o ritmo de expansão das exportações precisa ser superior a essa taxa. O valor da razão indica o número de anos, dado um determinado fluxo de exportação (acumulado em 12 meses), necessário para o pagamento do PEL. Vale mencionar que várias analises utilizam o PIB ao invés das exportações no denominador dos indicadores de solvência externa, o que carece de sentido pois o PIB não equivale à capacidade de geração de moeda estrangeira de um país.
No caso do Brasil, cujo desempenho exportador na última década ancorou-se nas vendas externas de commodities, também é importante incluir na análise a capacidade de geração de divisas pela indústria de transformação (IT). Diante do esgotamento do trajetória de alta dos preços desses bens e das mudanças em curso na China – desaceleração e mudança no padrão de crescimento, que resultarão em menor demanda por produtos agrícolas e minerais –, a trajetória futura das exportações brasileiras (e nossa capacidade de geração de divisas) será mais dependente do desempenho das vendas externas da IT. Assim, além do indicador tradicional PEL/exportações, três indicadores adicionais de solvência externa foram calculados:
• Serviço do PEL/exportações: este é um indicador alternativo ao PEL/exportações para avaliar a sustentabilidade ou não de uma trajetória de acúmulo de passivos externos, que depende exatamente da relação entre as exportações e o serviço do PEL;
• PEL/exportações da IT;
• Serviço do PEL/exportações da IT.
Assim como no caso da situação de liquidez externa, a análise privilegiará a comparação da situação de solvência externa em dez/2013 e no contexto pré-crise financeira global (dez/2007). Vale lembrar que no caso dos indicadores de solvência, a queda em 2008 dos indicadores que têm o PEL no numerador também decorreu dos efeitos da variação na taxa de câmbio e nos preços dos ativos domésticos.
A evolução dos indicadores mostra que, ao contrário da situação de liquidez externa, a de solvência sofreu deterioração na comparação de dez/2007 e dez/2013. Embora o indicador 1 (PEL/exportações totais) tenha permanecido praticamente no mesmo patamar (2,98 e 2,7, respectivamente), o indicador 2 (PEL/exportações da IT) avançou de 4,63 para 5,19 no mesmo período. Isso quer dizer que, enquanto seriam necessários 2,7 anos para pagar o PEL com o fluxo anual de exportações de bens e serviços de 2013, considerando somente as exportações da IT, seriam necessários mais de 5 anos. Os indicadores 3 e 4, que consideram o serviço do PEL no numerador, também indicam piora nessa situação, com destaque para o indicador 4, que aumentou de 0,37 para 0,58; ou seja, em 2013, o serviço do PEL “consumia” 58% das exportações da indústria de transformação.
O pior desempenho (entre 2007 e 2013) dos indicadores que consideram as exportações da IT no denominador é explicado pela sua menor taxa de crescimento (23%) em relação às exportações totais (52,4%), ao PEL (37,8%) e ao serviço do PEL (90,7%)., Esse aumento expressivo (90,7%) da taxa de remuneração do PEL – que é motivo de preocupação, assim como o baixo dinamismo das vendas externas da IT – está associado, entre outros fatores, ao aumento das remessas de lucros e dividendos pelas filiais da ETs, pressionadas pela redução da rentabilidade nos países de origem no contexto da grande recessão.
A análise das variações anuais também não traz otimismo. Após o desempenho favorável em 2010 e 2011, beneficiado pela recuperação da economia mundial sob liderança das economias emergentes (sobretudo, China) e pelo novo boom de preços das commodities, as exportações totais de bens e serviços recuaram em 2012 e 2013, num contexto de reversão desse boom e desaceleração da economia chinesa (e do seu apetite por commodities). Como indicam vários estudos (IMF, 2013), é significativamente alta a correlação entre o crescimento desses preços e a atividade econômica nas economias emergentes em geral e, especialmente, na China (principal importadora mundial de produtos primários). As commodities metálicas foram as mais prejudicadas por essa desaceleração, que envolveu o setor de construção civil chinês, importante consumidor desses bens; ademais, os preços elevados dos anos precedentes estimularam o aumento da oferta. A desmontagem de posições pelos investidores financeiros nos mercados futuros de commodities no segundo e terceiro trimestres de 2013, em resposta às incertezas quanto ao momento de início do “tapering”, também contribuiu para a queda dos preços (Unctad, 2013).
O crescimento das exportações da IT em 2013 (1,3% contra a queda de 0,4% nas exportações totais) – beneficiado pela depreciação cambial e pela recuperação das economias avançadas – foi um dado positivo, mas insuficiente para compensar o efeito negativo da queda dos preços das commodities. Em 2014, caso essa recuperação tenha continuidade (como prevêem os cenários básicos do FMI e Banco Mundial), essas exportações podem ganhar um impulso adicional, que, todavia, pode ser atenuado (ou até anulado) pela crise cambial na Argentina, principal destino das nossas exportações industriais.
Assim, como já destacado na Carta Iedi n. 608, para garantir uma trajetória sustentável de expansão das vendas externas da IT – fundamental para evitar uma situação de insolvência externa –, ações de política econômica são necessárias. Além de evitar um novo movimento de apreciação da moeda doméstica, o governo deve promover uma melhor coordenação junto à iniciativa privada para estimular os investimentos e a reindustrialização do país, simultaneamente à intensificação das negociações comerciais para a (re)inserção da indústria brasileira nas cadeias globais de valor. Ademais, vale lembrar que as vantagens para o país das exportações de produtos da IT comparativamente às commodities (inclusive industriais): geram efeitos positivos e cumulativos sobre a produtividade da indústria, são menos sujeitas às oscilações de preços nos mercados internacionais e têm maior elasticidade-renda da demanda.
Bibliografia
BIANCARELI, A. M. (2012) Uma nova realidade do setor externo brasileiro em meio à crise internacional. Texto para Discussão n. 13, Rede Desenvolvimentista, dez.
IMF (2014) World Economic Outlook Updated, January 2014. . Washington D.C.: International Monetary Fund. Disponível em: http://www.imf.org.
______(2013) World Economic Outlook, October 2013. Washington D.C.: International Monetary Fund. Disponível em: http://www.imf.org.
KREGEL, J (1996) “Riscos e implicações da globalização sobre a autonomia das políticasnacionais”, Economia e Sociedade n.º 7. Campinas: Instituto de Economia/Unicamp, p. 29-49.
MEDEIROS, C. A; SERRANO, F. (2001). Inserção externa e desenvolvimento. Fiori, José Luis (org.) Polarização mundial e crescimento. Editora Vozes: Petrópolis.
THOMAS Jr., L. (2014) Fragile Five’ Is the Latest Club of Emerging Nations in Turmoil, New York Times, Jan.28. Disponível em: http://www.nytimes.com. Acesso em: 07/02/2014.
UNCTAD (2013) Trade and Development Report. New York: UNCTAD.
WORLD BANK (2014) Global Economic Prospects: coping with policy normalization in high-income countries, January, 2014. Washington D.C: World Bank. Disponível em: http:// www.worldbank.org.