IEDI na Imprensa - Crise 'une' dois Brasis que andaram separados
Crise 'une' dois Brasis que andaram separados
Valor Econômico - 04/05/2015
Denise Neumann
A Ciser foi fundada em 1959 para atender aos clientes da loja de ferragens da família Schneider em Joinville, Santa Catarina. A indústria que nasceu do comércio transformou-se no maior fabricante de parafusos e porcas da América Latina ao longo de seus primeiros 40 anos de vida. Hoje, com 56 anos, possui cinco unidades e emprega 1.650 pessoas. Parte expressiva dessa estrutura, contudo, não envolve mais a linha de produção, mas empacotamento, expedição e transporte de produtos feitos na China, com tecnologia brasileira. "Entre 2000 e agora nossa produção física aumentou 13%, mas nosso faturamento cresceu 400%", conta o presidente da empresa Carlos Rodolfo Schneider, resumindo não só a história da empresa de sua família, mas da própria indústria brasileira.
Em 2005, a família de Cidália Azevedo Lima migrou de Lajedinho (BA) para São Paulo. Vieram com ela, o marido e os dois filhos, Rodolfo e Érica. Cidália chegou com emprego já tratado de doméstica e o marido, pedreiro, foi trabalhar na construção civil. Aos poucos, e com crediário, a casa ganhou tudo que ela queria. A máquina de lavar, paga em dez vezes no cartão de crédito, chegou em 2008. No ano passado, mais um sonho: a filha entrou na faculdade de nutrição, atendida pelo Fundo de Financiamento Estudantil (Fies). Hoje com 47 anos e carteira assinada, Cidália está separada e o filho casou, mas seu salário de R$ 1,8 mil como cuidadora e o de Érica, que é assistente administrativa, dão conta das despesas da casa. "Desde que eu cheguei minha vida melhorou", reconhece. "Mas agora tá tudo caro e o desemprego preocupa, eu tenho aluguel para pagar", pondera.
Assim como no caso de Cidália, a renda familiar dos brasileiros cresceu tanto pela oportunidade de trocar de emprego como pela correção do salário mínimo, que subiu 110% acima da inflação nos últimos 15 anos, período em que a taxa de desocupação recuou - de 12,4% para 4,8% na média anual entre 2003 e 2014. Se até o ano passado quase tudo era positivo no mercado de trabalho, a situação piorou em 2015. A inflação de mais de 8% projetada para o ano é a maior desde 2003 e apenas nos primeiros três meses, 50 mil postos de trabalho com carteira assinada foram fechados, pior resultado para o período desde 2000.
A Ciser e a família de Cidália são retratos de dois Brasis que pareceram andar em trajetória diferentes em parte dos últimos 15 anos. Desde 2000, enquanto o consumo das famílias subiu 64% e puxou o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), a indústria cresceu só 29% e o setor de serviços (que emprega a família de Cidália), 58%. A recessão que está desenhada para 2015 "une" os dois Brasis, traz à tona velhos dilemas, põe em risco parte das conquistas sociais dos últimos anos e confirma que o Brasil ainda não chegou ao crescimento sustentado. Sem mudança de rumo, dizem empresários e economistas, a crise não será passageira.
Para Regis Bonelli, coordenador do boletim de conjuntura do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre-FGV), a ênfase na agenda social e a redução da desigualdade (processo iniciado nos anos 90 quando o Plano Real controlou a inflação e ganhou força a partir dos governo de Luiz Inácio Lula da Silva) são áreas em que o Brasil melhorou muito. E a melhora na distribuição de renda, avalia, veio principalmente do mercado de trabalho.
Para Bonelli, o rumo foi perdido especialmente a partir de 2011, quando o governo não entendeu que era preciso reverter as políticas anticíclicas adotadas no pós-crise. "Elas foram bem sucedidas no início, mas segurar o nível de atividade com recursos públicos é um erro", avalia. "O Estado não pode tudo", pondera, criticando o "relaxamento macroeconômico" implícito na chamada nova matriz econômica, adotada no primeiro governo da presidente Dilma Rousseff.
Yoshiaki Nakano, diretor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (EESP-FGV), tem uma visão um pouco diferente. Mais pessimista, ele acha que os problemas estão mais arraigados e por isso são de mais difícil solução. "Os problemas básicos da economia persistem. O trio mortal de câmbio desajustado, juro alto e carga tributária elevada continua aí e hoje o quadro é pior do que há 15 anos", diz. Ele ressalva a melhora recente do câmbio: "Mas não podemos olhar só para o nível, é preciso que ele seja estável".
Nakano considera que o espaço para o Brasil encontrar o caminho para o desenvolvimento encolheu porque há um esgotamento da antes ilimitada oferta de mão de obra e porque enquanto esse estoque encolhia, a indústria perdia espaço no PIB e ficava mais anacrônica, apesar do mundo que crescia mais. "Não aproveitamos o espaço que havia para ampliar a exportação de manufaturados, pelo contrário. O Brasil se desindustrializou. E agora reindustrializar o país ficou mais difícil", diz ele. Sem abertura comercial, sem acordos internacionais e sem integração às cadeias globais de produção, o Brasil não terá instrumentos fundamentais para andar para frente, avalia Nakano, para quem o país ainda não pode prescindir da indústria.
A Prensas Schuler é um exemplo de empresa afetada pelo "trio mortal" descrito por Nakano. Em 2000, o maior cliente da subsidiária brasileira dessa multinacional que nasceu alemã e hoje tem capital austríaco, foi a Chrysler dos Estados Unidos. Naquele ano, como noticiou o Valor na época, dos US$ 100 milhões faturados pela operação brasileira da Schuler, US$ 85 milhões vieram da exportação.
Nos anos seguintes, a exportação seguiria como motor da empresa, até bater o recorde de 92% de participação no faturamento, em 2004. Nesta década, essa presença oscilou entre 30% e 40%, ao mesmo tempo em que o índice de nacionalização caiu de 90% para 70% e a receita com serviços triplicou, passando a representar entre 18% e 20% do faturamento, conta o diretor da empresa Paulo Tonicelli.
A realidade da Schuler repete a história da balança comercial do país. A empresa continuou exportando, e em valores exporta mais, mas a importação cresceu proporcionalmente mais. Em 15 anos, enquanto as exportações de manufaturados do Brasil aumentaram 200%, as importações desses bens cresceram 300%, provocando um rombo na balança comercial da indústria de transformação de US$ 59 bilhões - em 2006, o país tinha superávit de US$ 32 bilhões nessa conta. É o competitivo agronegócio que ajuda as contas externas do país. Entre 2000 e 2014, as exportações do setor subiram 370%, muito acima das importações, elevando seu saldo comercial de US$ 14,8 bilhões para US$ 80,1 bilhões.
Tonicelli aponta o câmbio valorizado como o grande fator de perda de competitividade da companhia no Brasil, mas ressalva que ele não é o único. "Para uma empresa do setor de máquinas, com uma longa cadeia de produção, a estrutura tributária, de impostos em várias fases, tira muita competitividade", diz ele.
Além da dupla impostos-câmbio, o diretor da Schuler lista mão de obra, energia elétrica e outros custos como fatores de perda de competitividade. "A alta da energia neste ano, superior a 40%, vai anular boa parte da desvalorização do câmbio", diz Tonicelli. Assim, vai ficar difícil o Brasil retomar o posto de fábrica de menor custo, que a unidade brasileira, localizada em Diadema, detinha até 2006. "Além disso, a desvalorização em relação ao euro e ao iene, é bem menor que com relação ao dólar", lembra.
Diante do mesmo dilema da Prensas Schuler, a Ciser decidiu brigar por seus clientes no Brasil com uma estratégia diferente. Antes de ser substituída por outro produto "made in China", a própria empresa usou o concorrente asiático para completar seu mix de produção. "Criamos empresas novas na China e os ensinamos a fazer nosso produto. Entramos com a tecnologia, mas não aportamos capital", explica Schneider. O controle da qualidade e o design das peças é brasileiro, mas parte dos empregos ficou na China. "Passou a ser muito caro produzir no Brasil", resume o presidente da Ciser.
A opção de revender bens fabricados fora de suas linhas de produção foi generalizada entre a indústria. De acordo com a Pesquisa Industrial Anual (PIA), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre 2007 e 2012, a participação da revenda de mercadorias na composição do faturamento do setor de transformação aumentou 70%.
O presidente do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), Pedro Passos, faz a ponte entre os dilemas da indústria e o país. "A perda de dinamismo da indústria tirou performance do PIB", avalia. Para Passos, desde o começo dos anos 2000, muito pouco foi feito para aumentar a produtividade da economia brasileira como um todo, com exceção do agronegócio. "Não tivemos reformas, não tivemos obsessão pelo que é necessário, não tivemos obsessão por educação, por infraestrutura, por medidas de facilitação do ambiente de negócios, por redução de carga tributária", lista ele. "Nos últimos 15 anos, tivemos soluços de melhoras de produtividade, mas faltou obsessão por persegui-la todos os dias", diz ele.
Schneider, da Ciser, também diretor do Movimento Brasil Eficiente (MBE), reforça que recuperar produtividade é chave para mudar o país. Nos últimos anos, diz, os salários (que ajudaram a melhorar o padrão de vida de famílias como a de Cidália), cresceram acima da produtividade e reduziram a margem de lucro das empresas, afetando sua capacidade de investir. Um estudo do Ibre do ano passado mostra que a produtividade total dos fatores ainda cresceu 2% ao ano entre 2003 e 2006, mas esse percentual foi caindo e entre 2010 e 2013 melhorou apenas 0,4% ao ano. Infraestrutura deficiente, carga tributária elevada e burocracia excessiva têm impedido o Brasil de ser mais eficiente, diz Schneider.
A estagnação dos ganhos de produtividade nos últimos anos também explica o baixo crescimento do PIB e está relacionada a escolhas de política econômica no pós-crise, que privilegiaram o consumo. Entre 2010 e 2014, no primeiro governo da presidente Dilma Rousseff, as despesas do governo federal com subsídios aumentaram 0,8 ponto percentual do PIB (gasto adicional de cerca de R$ 50 bilhões), mas os investimentos subiram apenas 0,1 ponto do PIB (R$ 5 bilhões a mais).
A conta das escolhas erradas para empresários e famílias chegou em 2015, por diferentes caminhos, e em um momento em que o mundo já não ajuda, pois cresce menos, e já há menos mão de obra disponível. O ajuste fiscal em curso vai aprofundar a desaceleração do ritmo de atividade, reduzindo o volume de negócios e provocando desemprego, enquanto o realinhamento das tarifas públicas (energia e combustíveis) elevou a inflação e está corroendo margem de lucro e renda disponível para o consumo, em uma espiral negativa que pode se autoalimentar.
Os empresários e os economistas consideram que o conjunto de superávit fiscal, realinhamento tarifário, menor intervenção no câmbio e fim da política de crédito subsidiado pelo Tesouro - entre outras medidas que reorientam a política macroeconômica e abandonam o incentivo ao consumo - são importantes para "arrumar" a economia, como tem defendido o ministro da Fazenda, Joaquim Levy. Eles avaliam, porém, que o conhecido até agora é insuficiente para recolocar o país em uma trajetória de crescimento sustentado. Pedro Passos, do Iedi, observa que "há um estrago microeconômico sendo feito para ajustar o macro."
Na lista do que cada um defende como caminho para um Brasil melhor e maior nos próximos anos, há uma convergência em torno da palavra produtividade. É do crescimento dela que virá o fôlego necessário e o espaço para crescer sem abandono das políticas de distribuição de renda. E a produtividade pode crescer via mão de obra mais qualificada e mais investimentos em infraestrutura, pondera Bonelli. "Sem elevar os investimentos em portos, aeroportos, estradas e ferrovias o país não aumentará suas exportações", diz ele. Schneider e Passos acrescentam a importância da simplificação e da redução da carga tributária, além de um ambiente mais amigável e menos burocrático para os negócios, como elementos para elevar a eficiência de toda economia.
Para a indústria, um câmbio menos apreciado e mais estável é fundamental, mas insuficiente, argumenta Nakano. Além de uma reorientação de política econômica que permita desmontar o "trio mortal", ele defende abertura comercial, com redução de tarifas negociada em acordos de comércio com Estados Unidos e União Europeia. A reindustrialização, diz, passa por uma indústria integrada às cadeias globais. Passos concorda. Por muito tempo, reconhece, os empresários preferiram a proteção. Isso mudou, segundo o presidente do Iedi. "O modelo de economia fechada não atende a mais ninguém, nem à maior parte da indústria, nem ao país."
No Brasil dos próximos 15 anos, diz Passos, alguns setores não vão se adaptar. Mas existem oportunidades e o jogo não está definido, apesar da derrota por 7 X 1. E Cidália também olha para além da crise. Ela planeja fazer um curso de radiologia ou de técnica de enfermagem. "Ficar só no ensino médio não é nada. Precisa ter conhecimento de mais alguma coisa".