Os componentes do déficit externo

Julio Gomes de Almeida – Ex-Secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e Professor do Instituto de Economia da Unicamp

Brasil Econômico – 07/11/2014

Já há dois anos o déficit em transações correntes brasileiro, que mede o buraco das contas externas, encontra-se em um nível perigoso. Em doze meses até setembro deste ano correspondeu a 3,7% do PIB, sabendo-se que um nível como esse ou um pouco maior já serviu de estopim para uma crise cambial. A estimativa do Banco Central para este ano é de 3,5% do PIB, muito próximo ao déficit do ano passado.

O Brasil conta com reservas substanciais — superiores a US$ 350 bilhões —, o que não é pouca coisa, mas que pode não servir de um anteparo completamente eficaz se, por exemplo, houver uma combinação de deterioração adicional da conta externa brasileira com desconfianças e fugas súbitas de capitais dos países emergentes.

Nosso país pode contar com um fator adicional para preservar sua condição externa se dentro de alguns anos certas condições forem satisfeitas e o pré-sal, que evolui, mas ainda é uma promessa, se transformar em fonte poderosa de geração de divisas, seja por maiores exportações ou por substituição de importações de petróleo e derivados. Entre hoje, quando os problemas do setor externo já estão postos, e o amanhã, quando poderemos desfrutar de um confortável e longo equilíbrio externo, cabe ter cautela e procurar possibilidades para tratar a questão cuja dimensão foi se avolumando nos últimos anos.

Pode não parecer verdadeiro, mas no período recente o Brasil acumulou cinco anos sucessivos de saldo externo, algo que perduraria até 2007, ou seja, o ano imediatamente anterior à crise global. Neste período, que teve poucos precedentes na história econômica brasileira, houve um dinamismo todo especial das exportações de bens primários, o boom das commodities, que a ascensão chinesa tanto ajudou. Mas, surpreendentemente, o resultado não seria tão favorável se o comércio exterior de bens industriais não gerasse excedentes tão expressivos quanto US$ 18 bilhões em 2007, graças às mudanças cambiais de 1999 e 2002/2003.

Desde a crise internacional os números da indústria despencam com uma velocidade tal que o superávit no montante já mencionado se transforma rapidamente em déficit, como em 2011, quando alcança US$ 52 bilhões. Desde então a trajetória continuou sendo de crescimento, mas de forma mais moderada, devido à estagnação da economia. No corrente ano deve alcançar US$ 60 bilhões.

Paralelamente, o aumento do desequilíbrio externo brasileiro teve outros componentes, como a crescente demanda por serviços (dada a maior integração indústria/serviços), os maiores gastos com viagens internacionais e os dispêndios de rendas (remessas de lucro e pagamento de juros), especialmente porque o investimento estrangeiro teve forte expansão, a despeito dos crescentes sinais de desarranjos do modelo econômico brasileiro. Para agravar a situação, o boom das commodities, que parecia neutralizar com folga mesmo os maiores desmandos de política econômica que levaram à crise industrial, mostra sinais, senão de retrocesso, pelo menos de refreamento expressivo. Mas não se deve perder de vista que, destacadamente, teve origem na débâcle industrial o déficit externo que o país agora ostenta e amedronta os analistas e os financiadores externos.

Hoje, a contabilidade do déficit em moeda estrangeira, que deve somar US$ 80 bilhões segundo a estimativa do Banco Central, está assim composta: o déficit de produtos da indústria, como já foi mencionado, soma US$ 60 bilhões; serviços contribuem com negativos US$ 46 bilhões; e rendas de capitais estrangeiros registram déficit de US$ 39 bilhões. Diante desses valores negativos, somente contribui positivamente o comércio de produtos primários, com saldo de US$ 63 bilhões.

Não será possível reverter esse quadro sem intensa política industrial, preferencialmente mais orientada ao investimento, à exportação e à inovação, muita atenção com o câmbio, que deve encontrar uma posição que dê competitividade à produção doméstica, além das mudanças que há muito tempo são pedidas para a estrutura tributária e infraestrutura brasileira. Sem caminharmos nessas direções, deveremos torcer e aguardar pelo pré-sal. Enquanto isso não acontece, o crescimento econômico ficará prejudicado. 


Julio Gomes de Almeida é Ex-Secretário de Política Econômica do
Ministério da Fazenda e Professor do Instituto de Economia da Unicamp