O problema fiscal brasileiro
 
Julio Gomes de Almeida
– Professor do Instituto de Economia da Unicamp e Ex-Secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda
 
Brasil Econômico – 28/03/2014

O rebaixamento da nota brasileira por uma daquelas empresas de rating, que antes da crise global de 2008 afiançavam serem seguros títulos que se revelariam plenos de risco e que causaram prejuízos incomensuráveis a investidores do mundo todo, possivelmente ajudará a amplificar os constrangimentos fiscais do governo brasileiro neste ano. Que o setor público deverá adaptar-se em 2014 a certos condicionantes que não estavam presentes até então e que são inevitáveis, já se sabia.

Isto pautou o anúncio feito recentemente pelo governo da meta de superávit primário para o corrente ano, de 1,9% do PIB, que foi bem recebido pelo mercado financeiro, pois viu neste anúncio uma mudança de atitude, especialmente quanto à proliferação de mecanismos anteriormente usados para elevação de receitas extraordinárias, a chamada "contabilidade criativa". Foi um sinal também de que o governo está disposto a interromper o que parecia uma trajetória do seu resultado fiscal em direção, caso nada fosse feito, a déficits nominais perigosos para a solvência do setor público. Tudo isso poderia ser levado em conta nas avaliações sobre o quadro fiscal brasileiro e evitado o rebaixamento da nota.

O Brasil tem de fato um problema fiscal que combina duas questões cuja superação não é trivial. A primeira é que as taxas de juros muito altas, que já vigoravam de longa data e se acentuaram recentemente no país, impõem um custo financeiro ao setor público que só não se traduz em déficits muito elevados se o superávit primário for relativamente alto. O quão alto deverá ser, depende das flutuações da taxa de juros, é claro, mas, salvo em situações excepcionais, não deve ser muito inferior a 2% do PIB até que nossa taxa de juros finalmente se aproxime do padrão internacional, pois do contrário os endividamentos bruto e líquido aumentariam de forma expressiva.

Em segundo lugar, o Brasil vem perdendo a capacidade ímpar com que contou no último decênio para adequar o ritmo com que cresciam suas despesas e suas receitas ordinárias. A evolução dos gastos públicos vem cada vez mais ganhando inflexibilidade à baixa - dentre outros motivos, por uma crescente indexação - e, mais grave, cresce de forma vegetativa a uma taxa apreciável. Enquanto foi possível contar com uma grande elasticidade do aumento de tributos relativamente ao PIB, pode-se compatibilizar tal tendência do lado da despesa com receitas que tenham padrão de crescimento correspondente. Isto permitiu que os resultados fiscais por um período considerável tivessem melhora e que o endividamento público líquido declinasse também significativamente. Como nosso ciclo de crescimento no período teve como base o consumo e como nosso sistema tributário apoia-se na taxação sobre o consumo, os dois lados da equação "fechavam". Ademais, era sempre possível aumentar na margem a carga tributária.

Pois bem, esse ciclo foi interrompido, talvez não para sempre, mas pelo menos no presente. Seu efeito se deu pelo lado da receita tributária, que perdeu potencialidade de evolução com o menor crescimento do consumo e da economia. O governo procurou reagir à situação desonerando o investimento, a produção e o consumo, com efeitos limitados no reerguimento da atividade, mas aprofundando a renúncia a receitas tributárias, o que o levou à busca de alternativas de receitas extraordinárias. Em suma, o quadro do último triênio, que deve se reproduzir em 2014, é que o crescimento real das despesas é muito superior ao crescimento das receitas tributárias usuais. Um grande esforço fiscal, combinado a algum acesso a receitas extraordinárias, poderá levar ao cumprimento da meta fixada para o ano. Mas o problema fiscal brasileiro persistirá. O que não se pode perder de vista é que as margens do setor público se estreitaram fortemente do lado fiscal, de modo que não há alternativa senão aproveitarmos cada possibilidade de reduzir juros e cada alternativa de crescimento econômico maior. Mas, certamente, isso não afastará a necessidade de revisão do gasto público, o que, do ponto de vista político, não será tarefa fácil.


Julio Gomes de Almeida é Professor do Instituto de Economia da Unicamp
e Ex-Secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda