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A Carta IEDI de
hoje analisa a vulnerabilidade externa da economia brasileira
a partir de três perspectivas complementares. Em primeiro
lugar, analisa-se a situação dos fluxos, ou seja,
o resultado das contas externas em 2013. Em segundo lugar, examina-se
a situação dos estoques, isto é, a evolução
do passivo externo líquido (PEL) e dos seus componentes.
Em terceiro lugar, calcula-se um conjunto de indicadores de vulnerabilidade
externa que levam em consideração as duas dimensões
(fluxos e estoques) e, assim, sintetizam a situação
atual dessa vulnerabilidade no curto (liquidez externa) e médio
e longo prazos (solvência externa).
Este tema
é de extrema relevância diante do início,
em janeiro, do chamado tapering do Fed norte-americano. Ademais,
o Brasil foi incluído, ao lado da Turquia, África
do Sul, Índia, Indonésia, no grupo dos “os
cinco frágeis”, que seriam os mais vulneráveis
à progressiva normalização das condições
monetárias nos Estados Unidos devido aos elevados déficits
em transações correntes, altas taxas de inflação
e/ou desaceleração do crescimento.
No que se
refere à dimensão dos fluxos, uma das principais
evidências da deterioração das contas externas
brasileiras nos últimos anos é a trajetória
ascendente do déficit em transações correntes
(DTC) desde 2009. Em 2013, essa deterioração se
intensificou em função, sobretudo, de três
resultados negativos:
-
O forte aumento do DTC, que avançou 50% frente a 2012,
atingindo seu recorde histórico, de US$ 81,4 bilhões
(ou 3,6% do PIB);
-
A forma de financiamento do DTC, que, pela primeira vez desde
2008, não foi integralmente coberto pelo Investimento
Direto Estrangeiro (IDE), ampliando a dependência do país
em relação ao ingresso de investimento de portfólio
estrangeiro (IPE), modalidade volátil de capital externo;
-
O
déficit de US$ 6 bilhões do Balanço de
Pagamentos (BOP), o primeiro desde o ano 2000, que foi financiado
pela venda de reservas internacionais.
O acúmulo
de DTC ao longo dos anos tem como consequência o aumento
do PEL, que é o resultado da diferença entre o passivo
externo bruto (PEB) e o ativo externo bruto (AEB). Além
do tamanho desse passivo, sua composição também
é relevante por duas razões principais. A primeira,
relevante para a situação de liquidez externa, refere-se
aos diferentes graus de volatilidade de cada modalidade do PEB,
quais sejam: IDE; IPE; e outros investimentos estrangeiros (OIE).
A segunda, que interfere na situação de solvência
externa, diz respeito à taxa de remuneração
(ou serviço financeiro) de cada modalidade do PEL (ou seja,
remessas líquidas de juros, lucros e dividendos e amortizações
da dívida), que também é bastante heterogênea.
No período
2009-2013, o PEB cresceu 40% (de US$ 1.080 bilhões para
US$ 1.515 bilhões), em função, sobretudo,
do aumento do estoque de IDE, que avançou 82%, contra 75%
dos OIE e somente 3% do IPE. Assim, durante a fase de alta do
ciclo de fluxos de capitais que sucedeu a crise financeira global,
a modalidade menos volátil de capital externo foi a principal
responsável pelo aumento do PEB, que equivale ao ativo
externo (direitos) dos não-residentes no Brasil. Esse resultado
explica-se tanto pelos fatores de atração do IDE
– investimentos nos setores produtores de commodities, com
preços em alta até 2011, e nos setores de comércio
e serviços beneficiados pelo crescimento da massa de rendimentos
–, como por fatores que evitaram uma expansão mais
expressiva dos ingressos de IPE: os mecanismos de gestão
dos fluxos de capitais vigentes até maio de 2013 e a turbulência
nos mercados financeiros internacionais provocada pela crise do
Euro e pelas incertezas quanto à política monetária
estadunidense.
Ademais, esses
mecanismos também contribuíram para a redução
do passivo externo de curto prazo - PECP, que inclui a dívida
externa de curto prazo e o estoque de investimento de portfólio
no país. Esse passivo, que somou US$ 501 bilhões
em dezembro de 2013, é uma das variáveis fundamentais
para a análise da situação de liquidez externa,
já que equivale aos recursos que podem sair rapidamente
do país (interrupção da rolagem dos empréstimos
externos e/ou resgate pelos não-residentes das aplicações
no país em questão).
Já
a solvência externa, que reflete a vulnerabilidade externa
no médio e longo prazos, depende da trajetória do
PEL e do seu serviço financeiro (ou seja, sua taxa de remuneração).
O PEL da economia brasileira atingiu US$ 758 bilhões em
2013, cifra 26,2% maior que a registrada em 2009 (US$ 550 milhões).
Esse crescimento foi resultado do avanço de 83,9% do investimento
direto (ID), de 1,6% do investimento de portfólio (IP)
e de 122% dos outros investimentos (OI). Contudo, houve recuo
em relação ao resultado dos três anos anteriores
(2010, 2011 e 2012) em função de uma combinação
de fatores. Em primeiro lugar, a manutenção da estratégia
de acúmulo de reservas cambiais. Em segundo lugar, o efeito
da depreciação cambial e da desvalorização
das ações brasileiras em 2013 (que reduziu o valor
em US$ dos estoques de ativos de não-residentes no país).
Em terceiro lugar, a maior taxa de crescimento do AEB frente ao
PEB (57,9% contra 40,3%), resultado do avanço no processo
de internacionalização dos capitais brasileiros,
sob liderança dos investimentos diretos das empresas brasileiras.
Para completar
a análise da situação atual de liquidez e
solvência externa da economia brasileira, foram calculados
um conjunto de indicadores, bem mais abrangente que o utilizado
nas análises recentes sobre o tema – de forma geral,
indicadores relacionados à dívida externa, que fornecem
uma visão incompleta da vulnerabilidade externa de uma
economia. Isso porque, a dívida externa de curto prazo
é atualmente uma fração muito pequena do
PECP e a dívida externa líquida é negativa
desde 2007 (devido à redução da dívida
externa pública e ao acúmulo de reservas internacionais).
A situação
de liquidez externa foi avaliada a partir de quatro indicadores,
cujo fator comum é a utilização no denominador
das reservas internacionais (ou seja, os recursos em divisas que
podem ser mobilizados no curto prazo frente a uma saída
súbita de capitais externos), se diferenciando somente
na composição do numerador, quais sejam:
-
Indicador 1: razão entre a dívida externa de curto
prazo e as reservas
-
Indicador 2: utilizado pela agência de classificação
de risco de crédito Standard & Poors, considera no
numerador as necessidades brutas de financiamento externo (NBFE),
que equivalem à soma do saldo em transações
correntes, com o principal vencível da dívida
externa de médio e longo prazo nos próximos 12
meses e o estoque da dívida de curto prazo;
-
Indicador 3: razão entre o PECP e as reservas;
-
Indicador 4: elaborado especialmente para esta Carta, consiste
na soma das NBFE com o estoque de IPE; este indicador mede a
pressão potencial sobre as reservas internacionais do
País no curto prazo.
Na comparação
de 2007 com 2013, os quatro indicadores mostram uma melhora da
situação de liquidez externa da economia brasileira,
mas há, claramente, dois grupos bem distintos. O primeiro
grupo, que inclui os indicadores 1 e 2, indica uma situação
favorável de liquidez externa em dez/2013 (indicadores
inferiores a 1), bem como melhor do que a registrada no limiar
da crise financeira global (dez/2007). Enquanto naquele momento,
a dívida externa de curto prazo absorvia 22% das reservas
e as NBFE 24%, em 2013 esses percentuais eram de, respectivamente,
9% e 13%. Já os indicadores do segundo grupo (indicadores
3 e 4, que incluem no numerador do estoque de IPE no país)
revelam uma situação desfavorável de liquidez
externa, pois superam 1, ou seja, as reservas são insuficientes
para fazer frente seja ao PECP, seja à soma “NBFE+estoque
de IPE no país”. Contudo, nos dois casos, também
houve melhora frente a dez/2007. Considerando o indicador mais
amplo (indicador 4), ele recuou de 3,06 para 1,37; isso quer dizer
que nas vésperas da crise financeira global a pressão
potencial de divisas era 206% maior que as reservas, percentual
que recuou para 37% em dez/2013. Vale esclarecer que se utiliza
o adjetivo “potencial” porque quando há liquidação
das aplicações no mercado financeiro doméstico
pelos investidores estrangeiros num regime de câmbio flutuante,
o valor em moeda estrangeira do IPE no país diminui em
função tanto da queda dos preços dos ativos
como da depreciação cambial provocada pela saída
de capitais.
Já
para avaliar a situação de solvência externa
de um país, um indicador fundamental é a razão
entre o PEL e as exportações. Isto porque, no caso
dos países em desenvolvimento, como o Brasil, as exportações
são a fonte de geração autônoma de
divisas, necessárias para pagar a taxa de remuneração
do PEL. O valor da razão indica o número de anos,
dado um determinado fluxo anual de exportação, necessário
para o pagamento do PEL. A condição para que esta
razão não tenha uma trajetória explosiva
é que essa taxa seja inferior ao ritmo de expansão
das exportações. Caso contrário, a razão
PEL/exportações segue uma trajetória de expansão
ilimitada.
No caso do
Brasil, cujo desempenho exportador na última década
ancorou-se nas vendas externas de commodities, também é
importante incluir na análise a capacidade de geração
de divisas pela indústria de transformação
(IT). Diante do esgotamento do trajetória de alta dos preços
de commodities e das mudanças em curso na China –
desaceleração e reorientação do padrão
de crescimento, que resultarão em menor demanda por produtos
agrícolas e minerais –, a trajetória futura
das exportações brasileiras será mais dependente
do desempenho das vendas externas da IT. Assim, além do
indicador tradicional PEL/exportações, três
indicadores adicionais de solvência externa foram calculados:
A evolução
desses quatro indicadores evidencia que, ao contrário da
situação de liquidez externa, a de solvência
sofreu deterioração na comparação
de dez/2007 e dez/2013. Embora o indicador 1 (PEL/exportações
totais) tenha permanecido praticamente no mesmo patamar (2,98
e 2,70, respectivamente), o indicador 2 (PEL/exportações
da IT) avançou de 4,63 para 5,19 no mesmo período
(ou seja, considerando somente as exportações da
IT, seriam necessários mais de 5 anos para pagar o PEL).
Os indicadores 3 e 4, que consideram o serviço do PEL no
numerador, também indicam piora, com destaque para o indicador
4, que aumentou de 0,37 para 0,58; ou seja, em 2013, o serviço
do PEL “consumia” 58% das exportações
da indústria de transformação.
O pior desempenho
(entre 2007 e 2013) dos indicadores que consideram as exportações
da IT no denominador é explicado pela sua menor taxa de
crescimento (23%) em relação às exportações
totais (52,4%), ao PEL (37,8%) e ao serviço do PEL (90,7%).
O crescimento das exportações da IT em 2013 (1,3%
contra a queda de 0,4% nas exportações totais) –
beneficiado pela depreciação cambial e pela recuperação
das economias avançadas – foi um dado positivo, mas
insuficiente para compensar o efeito negativo da queda dos preços
das commodities. Em 2014, caso essa recuperação
tenha continuidade (como prevêem os cenários básicos
do FMI e Banco Mundial), essas exportações podem
ganhar um impulso adicional, que, todavia, pode ser atenuado (ou
até anulado) pela crise cambial na Argentina, principal
destino das nossas exportações industriais.
Assim, para
garantir uma trajetória sustentável de expansão
das vendas externas da IT – fundamental para evitar uma
situação de insolvência externa –, ações
de política econômica são necessárias.
Além de evitar um novo movimento de apreciação
da moeda doméstica, o governo deve promover uma melhor
coordenação junto à iniciativa privada para
estimular os investimentos e a reindustrialização
do país, simultaneamente à intensificação
das negociações comerciais para a (re)inserção
da indústria brasileira nas cadeias globais de valor (como
já destacado na Carta Iedi n. 608). Ademais, vale lembrar
que as vantagens para o país das exportações
de produtos da IT comparativamente às commodities (inclusive
industriais): geram efeitos positivos e cumulativos sobre a produtividade
da indústria, são menos sujeitas às oscilações
de preços nos mercados internacionais e têm maior
elasticidade-renda da demanda.
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