14 de fevereiro de 2014

Setor Externo
A vulnerabilidade externa
da economia brasileira


   

 
A Carta IEDI de hoje analisa a vulnerabilidade externa da economia brasileira a partir de três perspectivas complementares. Em primeiro lugar, analisa-se a situação dos fluxos, ou seja, o resultado das contas externas em 2013. Em segundo lugar, examina-se a situação dos estoques, isto é, a evolução do passivo externo líquido (PEL) e dos seus componentes. Em terceiro lugar, calcula-se um conjunto de indicadores de vulnerabilidade externa que levam em consideração as duas dimensões (fluxos e estoques) e, assim, sintetizam a situação atual dessa vulnerabilidade no curto (liquidez externa) e médio e longo prazos (solvência externa).

Este tema é de extrema relevância diante do início, em janeiro, do chamado tapering do Fed norte-americano. Ademais, o Brasil foi incluído, ao lado da Turquia, África do Sul, Índia, Indonésia, no grupo dos “os cinco frágeis”, que seriam os mais vulneráveis à progressiva normalização das condições monetárias nos Estados Unidos devido aos elevados déficits em transações correntes, altas taxas de inflação e/ou desaceleração do crescimento.

No que se refere à dimensão dos fluxos, uma das principais evidências da deterioração das contas externas brasileiras nos últimos anos é a trajetória ascendente do déficit em transações correntes (DTC) desde 2009. Em 2013, essa deterioração se intensificou em função, sobretudo, de três resultados negativos:

  • O forte aumento do DTC, que avançou 50% frente a 2012, atingindo seu recorde histórico, de US$ 81,4 bilhões (ou 3,6% do PIB);
     
  • A forma de financiamento do DTC, que, pela primeira vez desde 2008, não foi integralmente coberto pelo Investimento Direto Estrangeiro (IDE), ampliando a dependência do país em relação ao ingresso de investimento de portfólio estrangeiro (IPE), modalidade volátil de capital externo;
     
  • O déficit de US$ 6 bilhões do Balanço de Pagamentos (BOP), o primeiro desde o ano 2000, que foi financiado pela venda de reservas internacionais.

O acúmulo de DTC ao longo dos anos tem como consequência o aumento do PEL, que é o resultado da diferença entre o passivo externo bruto (PEB) e o ativo externo bruto (AEB). Além do tamanho desse passivo, sua composição também é relevante por duas razões principais. A primeira, relevante para a situação de liquidez externa, refere-se aos diferentes graus de volatilidade de cada modalidade do PEB, quais sejam: IDE; IPE; e outros investimentos estrangeiros (OIE). A segunda, que interfere na situação de solvência externa, diz respeito à taxa de remuneração (ou serviço financeiro) de cada modalidade do PEL (ou seja, remessas líquidas de juros, lucros e dividendos e amortizações da dívida), que também é bastante heterogênea.

No período 2009-2013, o PEB cresceu 40% (de US$ 1.080 bilhões para US$ 1.515 bilhões), em função, sobretudo, do aumento do estoque de IDE, que avançou 82%, contra 75% dos OIE e somente 3% do IPE. Assim, durante a fase de alta do ciclo de fluxos de capitais que sucedeu a crise financeira global, a modalidade menos volátil de capital externo foi a principal responsável pelo aumento do PEB, que equivale ao ativo externo (direitos) dos não-residentes no Brasil. Esse resultado explica-se tanto pelos fatores de atração do IDE – investimentos nos setores produtores de commodities, com preços em alta até 2011, e nos setores de comércio e serviços beneficiados pelo crescimento da massa de rendimentos –, como por fatores que evitaram uma expansão mais expressiva dos ingressos de IPE: os mecanismos de gestão dos fluxos de capitais vigentes até maio de 2013 e a turbulência nos mercados financeiros internacionais provocada pela crise do Euro e pelas incertezas quanto à política monetária estadunidense.

Ademais, esses mecanismos também contribuíram para a redução do passivo externo de curto prazo - PECP, que inclui a dívida externa de curto prazo e o estoque de investimento de portfólio no país. Esse passivo, que somou US$ 501 bilhões em dezembro de 2013, é uma das variáveis fundamentais para a análise da situação de liquidez externa, já que equivale aos recursos que podem sair rapidamente do país (interrupção da rolagem dos empréstimos externos e/ou resgate pelos não-residentes das aplicações no país em questão).

Já a solvência externa, que reflete a vulnerabilidade externa no médio e longo prazos, depende da trajetória do PEL e do seu serviço financeiro (ou seja, sua taxa de remuneração). O PEL da economia brasileira atingiu US$ 758 bilhões em 2013, cifra 26,2% maior que a registrada em 2009 (US$ 550 milhões). Esse crescimento foi resultado do avanço de 83,9% do investimento direto (ID), de 1,6% do investimento de portfólio (IP) e de 122% dos outros investimentos (OI). Contudo, houve recuo em relação ao resultado dos três anos anteriores (2010, 2011 e 2012) em função de uma combinação de fatores. Em primeiro lugar, a manutenção da estratégia de acúmulo de reservas cambiais. Em segundo lugar, o efeito da depreciação cambial e da desvalorização das ações brasileiras em 2013 (que reduziu o valor em US$ dos estoques de ativos de não-residentes no país). Em terceiro lugar, a maior taxa de crescimento do AEB frente ao PEB (57,9% contra 40,3%), resultado do avanço no processo de internacionalização dos capitais brasileiros, sob liderança dos investimentos diretos das empresas brasileiras.

Para completar a análise da situação atual de liquidez e solvência externa da economia brasileira, foram calculados um conjunto de indicadores, bem mais abrangente que o utilizado nas análises recentes sobre o tema – de forma geral, indicadores relacionados à dívida externa, que fornecem uma visão incompleta da vulnerabilidade externa de uma economia. Isso porque, a dívida externa de curto prazo é atualmente uma fração muito pequena do PECP e a dívida externa líquida é negativa desde 2007 (devido à redução da dívida externa pública e ao acúmulo de reservas internacionais).

A situação de liquidez externa foi avaliada a partir de quatro indicadores, cujo fator comum é a utilização no denominador das reservas internacionais (ou seja, os recursos em divisas que podem ser mobilizados no curto prazo frente a uma saída súbita de capitais externos), se diferenciando somente na composição do numerador, quais sejam:

  • Indicador 1: razão entre a dívida externa de curto prazo e as reservas
     
  • Indicador 2: utilizado pela agência de classificação de risco de crédito Standard & Poors, considera no numerador as necessidades brutas de financiamento externo (NBFE), que equivalem à soma do saldo em transações correntes, com o principal vencível da dívida externa de médio e longo prazo nos próximos 12 meses e o estoque da dívida de curto prazo;
     
  • Indicador 3: razão entre o PECP e as reservas;
     
  • Indicador 4: elaborado especialmente para esta Carta, consiste na soma das NBFE com o estoque de IPE; este indicador mede a pressão potencial sobre as reservas internacionais do País no curto prazo.

Na comparação de 2007 com 2013, os quatro indicadores mostram uma melhora da situação de liquidez externa da economia brasileira, mas há, claramente, dois grupos bem distintos. O primeiro grupo, que inclui os indicadores 1 e 2, indica uma situação favorável de liquidez externa em dez/2013 (indicadores inferiores a 1), bem como melhor do que a registrada no limiar da crise financeira global (dez/2007). Enquanto naquele momento, a dívida externa de curto prazo absorvia 22% das reservas e as NBFE 24%, em 2013 esses percentuais eram de, respectivamente, 9% e 13%. Já os indicadores do segundo grupo (indicadores 3 e 4, que incluem no numerador do estoque de IPE no país) revelam uma situação desfavorável de liquidez externa, pois superam 1, ou seja, as reservas são insuficientes para fazer frente seja ao PECP, seja à soma “NBFE+estoque de IPE no país”. Contudo, nos dois casos, também houve melhora frente a dez/2007. Considerando o indicador mais amplo (indicador 4), ele recuou de 3,06 para 1,37; isso quer dizer que nas vésperas da crise financeira global a pressão potencial de divisas era 206% maior que as reservas, percentual que recuou para 37% em dez/2013. Vale esclarecer que se utiliza o adjetivo “potencial” porque quando há liquidação das aplicações no mercado financeiro doméstico pelos investidores estrangeiros num regime de câmbio flutuante, o valor em moeda estrangeira do IPE no país diminui em função tanto da queda dos preços dos ativos como da depreciação cambial provocada pela saída de capitais.

Já para avaliar a situação de solvência externa de um país, um indicador fundamental é a razão entre o PEL e as exportações. Isto porque, no caso dos países em desenvolvimento, como o Brasil, as exportações são a fonte de geração autônoma de divisas, necessárias para pagar a taxa de remuneração do PEL. O valor da razão indica o número de anos, dado um determinado fluxo anual de exportação, necessário para o pagamento do PEL. A condição para que esta razão não tenha uma trajetória explosiva é que essa taxa seja inferior ao ritmo de expansão das exportações. Caso contrário, a razão PEL/exportações segue uma trajetória de expansão ilimitada.

No caso do Brasil, cujo desempenho exportador na última década ancorou-se nas vendas externas de commodities, também é importante incluir na análise a capacidade de geração de divisas pela indústria de transformação (IT). Diante do esgotamento do trajetória de alta dos preços de commodities e das mudanças em curso na China – desaceleração e reorientação do padrão de crescimento, que resultarão em menor demanda por produtos agrícolas e minerais –, a trajetória futura das exportações brasileiras será mais dependente do desempenho das vendas externas da IT. Assim, além do indicador tradicional PEL/exportações, três indicadores adicionais de solvência externa foram calculados:

  • Serviço do PEL/exportações
     
  • PEL/exportações da IT;
     
  • Serviço do PEL/exportações da IT.

A evolução desses quatro indicadores evidencia que, ao contrário da situação de liquidez externa, a de solvência sofreu deterioração na comparação de dez/2007 e dez/2013. Embora o indicador 1 (PEL/exportações totais) tenha permanecido praticamente no mesmo patamar (2,98 e 2,70, respectivamente), o indicador 2 (PEL/exportações da IT) avançou de 4,63 para 5,19 no mesmo período (ou seja, considerando somente as exportações da IT, seriam necessários mais de 5 anos para pagar o PEL). Os indicadores 3 e 4, que consideram o serviço do PEL no numerador, também indicam piora, com destaque para o indicador 4, que aumentou de 0,37 para 0,58; ou seja, em 2013, o serviço do PEL “consumia” 58% das exportações da indústria de transformação.

O pior desempenho (entre 2007 e 2013) dos indicadores que consideram as exportações da IT no denominador é explicado pela sua menor taxa de crescimento (23%) em relação às exportações totais (52,4%), ao PEL (37,8%) e ao serviço do PEL (90,7%). O crescimento das exportações da IT em 2013 (1,3% contra a queda de 0,4% nas exportações totais) – beneficiado pela depreciação cambial e pela recuperação das economias avançadas – foi um dado positivo, mas insuficiente para compensar o efeito negativo da queda dos preços das commodities. Em 2014, caso essa recuperação tenha continuidade (como prevêem os cenários básicos do FMI e Banco Mundial), essas exportações podem ganhar um impulso adicional, que, todavia, pode ser atenuado (ou até anulado) pela crise cambial na Argentina, principal destino das nossas exportações industriais.

Assim, para garantir uma trajetória sustentável de expansão das vendas externas da IT – fundamental para evitar uma situação de insolvência externa –, ações de política econômica são necessárias. Além de evitar um novo movimento de apreciação da moeda doméstica, o governo deve promover uma melhor coordenação junto à iniciativa privada para estimular os investimentos e a reindustrialização do país, simultaneamente à intensificação das negociações comerciais para a (re)inserção da indústria brasileira nas cadeias globais de valor (como já destacado na Carta Iedi n. 608). Ademais, vale lembrar que as vantagens para o país das exportações de produtos da IT comparativamente às commodities (inclusive industriais): geram efeitos positivos e cumulativos sobre a produtividade da indústria, são menos sujeitas às oscilações de preços nos mercados internacionais e têm maior elasticidade-renda da demanda.
 

 

 

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