Mariana Mazzucato, professora da Universidade de Sussex (Reino
Unido) e especialista em inovação, reconstitui em
detalhes, em seu livro “The Entrepreneurial State: debunking
public vs. private sector myths", o percurso histórico
das principais inovações tecnológicas das
últimas décadas, identificando a importância
da intervenção estatal. Porque é o Estado
que investe nas etapas iniciais do processo de inovação
tecnológico – quando existe incerteza radical –
ela lhe confere um papel empreendedor.
Suas conclusões
expostas na Carta IEDI de hoje são de grande valor para
o Brasil que vem tentando desenvolver uma política industrial
e de inovação que apresenta muitos méritos
e avanços, mas ainda precisa identificar rumos que as tornem
instrumentos de mudança da estrutura industrial e da capacidade
da indústria de protagonizar a maior inovação
e o aumento de produtividade da economia.
Desde meados
dos anos 1950, a teoria econômica confere à inovação
tecnológica o papel de principal motor do crescimento econômico,
levando os governos a concentrarem esforços para impulsionar
investimentos em tecnologia e em capital humano, dando origem
a políticas innovation-led growth. A compreensão
do papel estatal na inovação foi mais bem abordada
pela teoria evolucionista – alinhada à tradição
schumpeteriana – em oposição aos esquemas
teóricos baseados em funções de produção,
como os modelos de crescimento exógeno e endógeno.
Os evolucionistas veem a inovação, sujeita a elevada
incerteza, como produto de especificidades das empresas que, por
sua vez, estão imersas no processo concorrencial, gerando
“sistemas de inovação”. Sistemas de
inovação são definidos como a rede de instituições
nos setores público e privado cujas atividades e interações
iniciam, importam, modificam e difundem novas tecnologias. O papel
do Estado nos sistemas nacionais de inovação não
se resume à criação de conhecimento a partir
da pesquisa básica, realizada em laboratórios e
universidades (o que compensaria uma falha de mercado), mas também
compreende mobilizar recursos que permitam que conhecimentos e
inovações se difundam amplamente entre os setores
da economia.
Esse papel
facilitador não é, contudo, suficiente para compreender
a importância que os investimentos públicos tiveram
para o desenvolvimento das principais inovações
tecnológicas ao longo da história. As evidências
de sucesso de estratégias de desenvolvimento lideradas
pelo Estado levam a considerar uma função mais ativa
e central das intervenções estatais no processo
de inovação. O sucesso de uma inovação
está baseado em estratégias estatais de longo prazo
e na orientação dos investimentos. A reconstituição
das trajetórias das principais inovações
tecnológicas recentes, como a Internet, nanotecnologia
e biotecnologia, mostram que o Estado tem mais predisposição
do que o setor privado em enfrentar o ambiente de incertezas radicais,
investindo nos estágios iniciais do desenvolvimento de
novas tecnologias. Por essa razão, Mazzucato confere ao
Estado um papel empreendedor.
O caso dos
EUA ilustra o empreendedorismo estatal, uma vez que seu Estado,
segundo a autora, tem se comprometido massivamente com a redução
de incertezas, assumindo riscos para induzir a inovação.
O governo federal dos EUA configura-se como o principal player
do sistema americano de inovação, não apenas
fornecendo subsídios de longo prazo a determinadas empresas
(nesse sentido, de alguma forma facilitando o surgimento de campeões
nacionais), mas também funcionando como o principal gerador
e disseminador de conhecimentos. Por meio de várias agências
e laboratórios públicos, faz uso de encomendas e
compras governamentais, bem como de seu poder regulatório,
para moldar mercados e dirigir o avanço tecnológico.
Se o papel
empreendedor do Estado foi tão importante para garantir
a dianteira da revolução das tecnologias de informação
e comunicação aos EUA, restrições
contemporâneas a esse papel estão na origem do relativo
atraso americano no desenvolvimento de tecnologias limpas, responsáveis
pela “revolução verde” da indústria.
Países como Alemanha e, mais recentemente, a China têm
demonstrado um comprometimento maior com o avanço dessas
tecnologias. Entretanto, outros, como o Reino Unido, estão
em situação ainda pior do que os EUA, ao rejeitar
o papel empreendedor do Estado.
Em parte,
as dificuldades atuais em fazer do Estado um agente empreendedor,
de forma a impulsionar a inovação e o crescimento
econômico, deve-se à disseminação de
uma ideologia que caracteriza o Estado como burocrático,
inerte e ineficiente; cujas intervenções no sistema
econômico seriam responsáveis por bloquear o livre
mercado, inibindo o espírito empreendedor dos empresários
e a introdução de inovações tecnológicas
e comprometendo, assim, o crescimento econômico. Seria visto,
então, como inimigo dos empresários. Essa ideologia,
que o livro de Mariana Mazzucato busca combater, além de
carecer de fundamentação histórica, funciona
como instrumento de cristalização de desigualdades
sociais. Segundo a autora, a distorção da relação
risco-retorno que caracteriza o processo de inovação
está na base do aumento da desigualdade social depois dos
anos 1980.
Se em finanças
é amplamente aceita a ideia de que maiores riscos vêm
acompanhados de maiores retornos, isso não é, contudo,
verdade no caso da inovação. É o Estado empreendedor
quem enfrenta a incerteza radical própria das primeiras
etapas do surgimento de uma nova tecnologia – isto é,
os riscos do processo de inovação são amplamente
socializados. Já o retorno é, na sua maior parte,
capturado pelo setor privado, ao investir em etapas posteriores
do processo de inovação, quando os riscos já
são identificáveis e gerenciáveis.
Isso ocorre
porque o processo de inovação tem caráter
fortemente cumulativo. Dependendo de quando um agente específico
entra na cadeia de inovação, ele é capaz
não apenas de se apropriar de retornos compatíveis
com sua contribuição (isto é, a parcela de
riscos que assumiu), mas de toda a área sob a curva cumulativa
de inovação. Assim, à medida que o setor
privado participa do processo de inovação em etapas
mais próximas do lançamento no mercado de produtos
finais ou de abertura de capital nos mercados financeiros (no
caso do venture capital), ele é capaz de capturar
retornos desproporcionais aos riscos por ele assumidos.
As condições
de a sociedade obter retornos indiretos, como o aumento do emprego
e a geração de receitas fiscais para o Estado, tem
sido, em muito, dificultadas pela globalização financeira.
Diante da liberdade dos fluxos de capitais, nada impede que as
empresas que se beneficiaram do papel empreendedor de um Estado
vão gerar empregos em outras partes do mundo, como parte
de suas estratégias de redução dos custos
de produção, nem que façam uso de paraísos
fiscais para evitar o pagamento de impostos devidos.
É necessário,
então, que as intervenções estatais no sentido
de apoiar as inovações venham acompanhadas de mecanismos
que garantam a captura de parte dos retornos gerados por ela.
Mazzucato sugere a adoção de golden shares
sobre patentes, criação de um fundo nacional para
inovação, empréstimos reembolsáveis
em função do rendimento das empresas, participações
acionárias e apoio à inovação por
meio de bancos de desenvolvimento.